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as vacas têm para onde ir, o povo do piquiá não:
o reassentamento do piquiá de baixo e os caminhos do desenvolvimento brasileiro

USINA
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Moradora do Piquiá de Baixo mostrando os impactos da poluição em sua casa. Foto: Marcelo Cruz.


​Este texto foi escrito em 2015 pela Usina CTAH em parceira com a Rede Justiça nos Trilhos, procurando articular uma reflexão crítica a respeito das consequências do desenvolvimentismo para as populações mais vulneráveis a partir do caso da comunidade do Piquiá de Baixo, em Açailândia (Maranhão), acompanhada pela assessoria técnica desde 2010 em sua luta pelo reassentamento coletivo numa área livre de poluição.

Participaram diretamente da redação deste texto os membros da Rede Justiça nos Trilhos Antônio Filho e Danilo Chammas e os associados da Usina CTAH Ícaro Vilaça, Isadora Guerreiro, Kaya Lazarini e Paula Constante.




O Piquiá de Baixo [1] é uma comunidade de aproximadamente 350 famílias (cerca de 1.100 pessoas), localizada no Município de Açailândia, Estado do Maranhão, no Nordeste brasileiro. Registros oficiais atestam que o processo de ocupação que originou a comunidade – que se instalou em uma área de riquezas naturais consideráveis, às margens do rio Pequiá, principal afluente do rio Gurupidata – teve início nos anos 1970.

A instalação do Projeto de Mineração Carajás [2], na década de 1980, provocou alterações significativas na vida da comunidade, que passou a ter que conviver com a Estrada de Ferro Carajás e o entreposto de minério operado pela Companhia Vale do Rio Doce (hoje Vale S.A.) e com um polo de transformação de minério de ferro em ferro gusa – e, posteriormente, com produção de energia através de uma central termoelétrica, de cimento e aço –, integrado pelas empresas Viena Siderúrgica S/A, Siderúrgica do Maranhão S/A (Simasa), Cia. Siderúrgica Vale do Pindaré, Ferro Gusa do Maranhão Ltda. (Fergumar), Gusa Nordeste S/A e posteriormente também pela Guarany Siderúrgica e Mineração S.A., Cimento Verde do Brasil Ltda. e Aço Verde Brasil. [3]

Este artigo abordará algumas das iniciativas e medidas tomadas pela comunidade de Piquiá de Baixo – organizada através de sua Associação Comunitária – para tentar reparar coletivamente os danos sofridos em decorrência da contaminação do ar, do solo e da água, associadas às operações das empresas mencionadas, que contam com o consentimento e apoio do Estado. 


Um povo que respira poeira de ferro

O contraste é profundo. De um lado, a indústria de ferro gusa ligada ao projeto desenvolvimentista nacional e à inserção brasileira no mercado internacional de commodities. De outro, uma comunidade e sua dinâmica local. De um lado, uma ferrovia de escala nacional, construída para escoar a produção do Projeto Carajás para o porto de São Luís/MA – e sobre ela o maior trem de carga do mundo com seus quase quatro quilômetros de extensão e trezentos vagões. De outro lado, ao longo da ferrovia, pequenas comunidades. Resultado: acidentes e mortes se tornaram rotineiros (entre 2006 e 2013, a média é de duas pessoas atropeladas e mortas pelo trem da Estrada de Ferro Carajás a cada três meses).

O Projeto Carajás, lançado no contexto da política desenvolvimentista da Ditadura Militar, trouxe para a região a Companhia Vale do Rio Doce – criada em 1942 durante a Era Vargas e privatizada sob protestos e denúncias em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso – para extrair, industrializar e conduzir minérios, principalmente de ferro, para exportação, visando "promover o crescimento econômico" da região.

A empresa começou com um volume de trinta milhões de toneladas de minérios extraídos ao ano. Hoje, chega a aproximadamente 110 milhões e pretende alcançar a meta de 230 milhões de toneladas ao ano até 2019. A alta qualidade do minério permite excepcional lucratividade: o custo de produção declarado pela empresa, entre a retirada da matéria prima, sua transformação básica e o transporte até o porto, é de US$ 20 a US$ 22/tonelada. Em tempos mais lucrativos, o preço da tonelada chegou a US$ 180/tonelada.

Atualmente, uma das maiores consumidoras do minério de ferro – utilizado sobretudo na construção civil – é a China. A Vale costuma se orgulhar pelo fato de muitas estruturas da cidade de Xangai terem sido erguidas com materiais que têm como fonte primária o minério de ferro brasileiro. Hoje, cerca de 98% do minério de ferro extraído em Carajás é exportado. Apenas 2% são transformados na região em ferro gusa – e, naturalmente, ficam também os desastres ambientais ligados a esse processo de produção.

Fazem parte da cadeia produtiva do ferro gusa duas matérias-primas fundamentais: o minério de ferro e o carvão vegetal proveniente da queima da madeira. Grandes quantidades de água são capturadas para o resfriamento dos fornos. Desde que as indústrias se instalaram em Açailândia, na década de 1980, a apropriação irresponsável desses bens naturais poluiu as águas, o ar e devastou a floresta nativa. Para dar continuidade à produção do carvão, implantou-se a monocultura do eucalipto, que além de causar danos ambientais em larga escala, colabora para expulsar pequenos produtores agrícolas da região.

A tecnologia adotada pelas indústrias de produção do ferro gusa é propositadamente obsoleta: a quantidade de poeira tóxica liberada através desses sistemas poderia ser diminuída consideravelmente com a adoção de novas soluções – já experimentadas em outros lugares do país e do mundo.
No meio do caminho, à beira da ferrovia que liga os novecentos quilômetros entre as minas e o porto de São Luís do Maranhão, encontra-se a comunidade de Piquiá de Baixo. Foi dali que, em 2005, o Sr. Edvard, presidente da Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá, escreveu de próprio punho uma carta ao então Presidente Lula explicando a situação em que viviam as famílias de Piquiá de Baixo. Recebeu o retorno que apontava caminhos e órgãos públicos que deveriam ser procurados pela comunidade.

Laudos elaborados desde 2007 demonstram a inviabilidade da convivência entre indústrias e assentamentos humanos naquela localidade. Nesse contexto, a Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá decidiu lutar coletivamente pelo reassentamento em uma nova área, livre da contaminação. Ao mesmo tempo, tomou iniciativas em busca da redução da poluição e da reparação pelos danos causados.
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Vista das instalações das siderúrgicas vizinhas à comunidade.

​O ponto de vista das comunidades e as principais violações


A instalação dos empreendimentos em Piquiá sem um estudo prévio de impacto ambiental, sem um processo de licenciamento [4] – que pudesse prever a adoção de medidas mitigadoras ou compensatórias – e sem qualquer diálogo com as pessoas que já ocupavam aquela área causou, aos moradores, uma violenta alteração em seu modo de vida.

Passados mais de 25 anos do início das operações industriais, os impactos negativos sofridos pela comunidade são intensos e visíveis a olho nu. Visitar o povoado desperta em qualquer pessoa angústia e revolta por conta das condições indignas às quais os moradores de Piquiá de Baixo estão submetidos. São constatadas situações de grave desrespeito aos direitos humanos; são identificadas histórias de vidas degradadas ou, pior ainda, ceifadas graças a enfermidades decorrentes da emissão de gases, de material particulado e de efluentes, que têm afetado sobretudo órgãos dos sistemas respiratório e cardiovascular, além da pele e da visão de crianças, jovens, adultos e idosos.

Também têm sido recorrentes os acidentes, que provocam queimaduras, sobretudo em crianças e animais, decorrentes do contato destes com a escória incandescente que advém da produção de ferro gusa e é depositada na comunidade a céu aberto [5]. O ruído decorrente do funcionamento da central termoelétrica, bem como dos caminhões e trens que circulam dia e noite pela comunidade, provoca queixa dos moradores quanto aos danos à sua saúde física e psicológica.

A população local, até hoje de vocação majoritariamente agricultora, foi pouco a pouco sendo impedida de exercer sua atividade produtiva, seja pela apropriação, por parte das indústrias, das áreas que eram usadas para o cultivo, seja pela contaminação dos espaços que permaneceram na posse da comunidade. Atualmente, a grande maioria das famílias que reside em Piquiá de Baixo é considerada pobre ou miserável.

Os planos de vida daqueles que escolheram o Piquiá de Baixo para viver foram drasticamente alterados e as famílias deixaram de investir na melhoria de suas residências. Alia-se a isso toda a escassez de investimentos do poder público na região, que tem intensificado a privação do acesso dos moradores aos seus direitos mais fundamentais.

É importante citar também que são poucos os moradores de Piquiá de Baixo que têm a oportunidade de trabalhar na Vale S.A. ou nas indústrias de ferro gusa localizadas a poucos metros de suas residências. Além disso, às companhias de produção de ferro gusa que operam em Açailândia tem sido atribuída, pelo Ministério do Trabalho, responsabilidade pela exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão, em carvoarias ou fazendas de plantação de eucaliptos destinados à produção de carvão vegetal. Têm sido denunciadas também as más condições de trabalho no interior das próprias usinas de ferro gusa, com sucessivos acidentes de trabalho, gerando mortes, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, além de graves doenças pela exposição dos trabalhadores a temperaturas muito elevadas e danos à audição e visão. Soma-se a isso a devastação da floresta nativa para a produção de carvão vegetal.

As violações de direito provocadas pela cadeia de mineração e de siderurgia sobre os moradores de Piquiá de Baixo foram objeto de estudo realizado pela Federação Internacional de Direitos Humanos (Fidh), em parceria com sua organização membro no Brasil, Justiça Global, e em colaboração com a Rede Justiça nos Trilhos, a Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá, o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia e outras organizações locais da sociedade civil. O trabalho se baseou na metodologia de “estudo de impacto em direitos humanos” criada pela organização canadense Rights and Democracy.

O trabalho de pesquisa se iniciou em abril de 2010. As conclusões da pesquisa estão no relatório “Quanto valem os direitos humanos? – Os impactos sobre os direitos humanos relacionados à indústria da mineração e da siderurgia em Açailândia”. Ficou comprovada a existência de um elevado grau de enfermidades no bairro de Piquiá de Baixo, relacionado à emissão de poluentes por parte das indústrias de ferro gusa. Apenas para exemplificar, a pesquisa atestou que 59% das famílias tinham tido alguém com febre em alguns dos quinze dias que antecederam as entrevistas.
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Por que se optou pela busca de soluções através do reconhecimento de direitos e da sua reivindicação coletiva?

As primeiras reclamações dos moradores tiveram como base o argumento de que o Estado havia decidido pela implantação de um polo siderúrgico em um local onde já existia uma comunidade instalada desde 1972. Essas reclamações passaram a tomar forma de denúncia a partir de 1989, com a fundação da Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá (ACMP). Em um primeiro momento, as empresas se negaram a discutir o assunto, rechaçando sua responsabilidade e transferindo-a aos gestores públicos.

Em 2005, ainda sem um plano que abarcasse toda a comunidade, 21 moradores de distintas famílias ingressaram com ações judiciais individuais em face de uma das empresas, com pedidos de indenização por danos morais e materiais causados pela poluição decorrente da atividade industrial.

Um estudo realizado em 2007 pela bióloga espanhola Mariana de La Fuente, a pedido do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, concluiu que a poluição industrial sobre as águas do rio que beira a comunidade de Piquiá de Baixo havia tornado o ambiente definitivamente impróprio para a sobrevivência de seres vivos.  Foi quando então se iniciaram as primeiras formas de organização e conversas coletivas com a comunidade sobre o destino que buscariam.

Em 2008, um levantamento realizado pela Associação de Moradores para reassentamento com todas as famílias buscava identificar quais os rumos que deveriam tomar diante de três opções sugestivas: permanecer no local lutando para diminuir a poluição; ser retirado o britador das proximidades da comunidade ou buscarem outro local para morar. O levantamento apontou que 96% das famílias tinham como desejo sair do local e lutar por um assentamento coletivo longe da poluição – e que as empresas e governos fossem responsabilizados por todo esse processo de mudança.

Decidiu-se por um processo de negociação arbitrado pelo Ministério Público, tanto pela desconfiança a respeito da efetividade da via judicial (poderia ser mais demorado e não havia garantia de sucesso), como pelo fato de que na época a comunidade não contava com assessoria jurídica para uma batalha judicial dessa envergadura.


Localização da Comunidade do Piquiá de Baixo

A luta pelo reassentamento e pela autonomia na concepção do futuro bairro

O Piquiá de Baixo é mais um entre muitos grupos humanos, de diferentes etnias, costumes e tradições – habitantes de cidades ou camponeses, indígenas e quilombolas – afetados pela violenta implantação da indústria mineradora nas regiões norte e nordeste do país. Desde suas mobilizações iniciais, os moradores têm tido como parceiros a Rede Justiça nos Trilhos, Paróquias de Açailândia (em um primeiro momento a Paróquia São João Batista e depois a Paróquia Santa Luzia) – Diocese de Imperatriz – os Missionários Combonianos do Nordeste e o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia Carmen Bascarán (CDVDH). As violações do direito à vida, à moradia e à saúde também despertaram a atenção de organizações em defesa dos direitos humanos de outros estados no Brasil e internacionalmente.

A atuação organizada dos moradores alcançou a esfera das instituições jurídicas quando o Ministério Público instaurou um Inquérito Civil Público  e, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Maranhão, abriu uma mesa de negociações para viabilizar o reassentamento da comunidade. Dessa mesa participaram o Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do Maranhão (Sifema), a Vale S.A., a Prefeitura Municipal de Açailândia e o Governo do Estado do Maranhão, além da Associação de Moradores, com a assessoria da Rede Justiça nos Trilhos e do CDVDH.
Após muita insistência, o Ministério Público e a Defensoria Pública firmaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em maio de 2011, que determinou a desapropriação de terreno para o reassentamento da comunidade. O Município de Açailândia assumiu o compromisso de desapropriar uma área de 38 hectares previamente selecionada, enquanto o Sifema se obrigou a cobrir os custos da desapropriação, mediante doação ao Município. Apesar de significar um importante avanço, este seria apenas o primeiro passo de uma longa jornada em vista da efetivação da conquista da terra. O valor inicialmente oferecido a título de indenização foi contestado pelo proprietário do terreno, gerando percalços na imissão provisória na posse e depois na sacramentação da transferência da propriedade. Com efeito, a sentença que confirmou a desapropriação foi proferida apenas em dezembro de 2013, vindo a ser confirmada pelo Tribunal de Justiça do Maranhão nos primeiros meses de 2015, após recurso de apelação por parte do proprietário. Semanas depois deu-se o trânsito em julgado, concluindo-se o processo judicial com o pagamento da indenização ao proprietário e a emissão da carta de adjudicação ao cartório de registro de imóveis.

A utilização de terras públicas ou desapropriadas pelo Estado para este fim – reassentar populações já residentes em áreas afetadas por grandes projetos, como nos casos ligados a grandes eventos (Copa do Mundo ou Olimpíadas) – comprova a necessidade da criação de uma política específica para os casos de reassentamento forçado no Brasil.

Em agosto de 2012, foi celebrado o segundo TAC entre Ministério Público e Sifema. Na ocasião, o Sifema obrigou-se a doar à Associação de Moradores os recursos necessários que esta pudesse viabilizar a contratação, de maneira autônoma e responsável, dos prestadores dos serviços necessários para a realização do projeto arquitetônico e urbanístico do Reassentamento do Piquiá de Baixo. Assim, após um largo processo, a comunidade venceu a desconfiança e a visão paternalista expressada por alguns dos atores e teve reconhecido o direito de contratar uma assessoria técnica própria, além de realizar os estudos necessários no terreno do reassentamento para subsidiar o início do projeto, e também contratar uma equipe multidisciplinar para elaboração dos critérios para definição das famílias contempladas.

Por fim, outra rodada de negociações realizada em 2014 resultou no compromisso firmado pela Vale S.A. e também pelo Sifema de aportarem recursos adicionais para a construção das casas e realização das obras de infraestrutura, em complementação aos recursos previstos pelo Programa Minha Casa Minha Vida.
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A participação direta dos moradores

Os momentos de mobilização que construíram a caminhada da comunidade permanecem vivos na memória das famílias. Durante as assembleias públicas, rodas de debate no bairro e até nas celebrações religiosas realizadas nas igrejas do Piquiá de Baixo, são rememoradas as diversas ocasiões de luta, e são lembradas as conquistas após cada uma das mobilizações, conformando uma memória coletiva da sua história, necessária para que continuem a lutar.

Em dezembro de 2011, centenas de moradores saíram em marcha e bloquearam a BR-222, que liga Açailândia a São Luís. O bloqueio durou mais de quatro horas em um protesto prolongado com queima de pneus. Pouco tempo depois os moradores do Piquiá de Baixo voltaram a protestar durante a visita a Açailândiada da então governadora do Estado Roseana Sarney, utilizando máscaras respiratórias descartáveis que evidenciavam simbolicamente sua indignação perante a poluição e à conivência dos poderes públicos. Um outro protesto de fôlego forçou o pagamento, pelo Sifema, de uma das parcelas assumidas no segundo TAC e que até então não havia sido paga. Na ocasião, em fevereiro de 2014, os moradores realizaram um verdadeiro esforço de cooperação e, divididos em turnos, fecharam durante trinta horas os portões de entrada e saída de duas das guseiras.

A própria atuação dos advogados que assessoram a comunidade tem se dado de maneira “não tradicional”, subvertendo a regra da relação cliente-procurador. Nenhuma medida é tomada pelos advogados sem uma prévia discussão com os membros da diretoria da Associação de Moradores, ou, no caso de questões de maior relevância, em assembleias gerais abertas a toda a comunidade.

Com efeito, destacam-se a presença constante e a participação consciente e autônoma dos moradores nas audiências no Fórum de Açailândia, sessões de julgamento no Tribunal de Justiça do Maranhão e em reuniões na sede do Ministério Público, da Defensoria Pública, na Prefeitura de Açailândia, nas distintas secretarias do Governo do Estado, no Ministério das Cidades ou ainda na sede da Vale S.A., no Rio de Janeiro. Em muitas ocasiões, os moradores que são escolhidos para entrar nas reuniões são fortalecidos pela presença massiva de dezenas ou centenas de pessoas do lado de fora, portando cartazes ou outros instrumentos para expressar de maneira pacífica e contundente suas reclamações e expectativas.

Cabe salientar ainda a importância da participação de um dos moradores de Piquiá de Baixo, por duas vezes consecutivas, nas assembleias anuais de acionistas da Vale S.A., realizadas na cidade-sede da empresa, nos meses de abril de 2013 e de 2014. Trata-se de uma iniciativa que vem sendo levada a cabo desde 2010 pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale. Sendo esta uma empresa de capital aberto, qualquer pessoa física ou jurídica pode comprar ações da empresa na Bovespa e com isso adquirir o direito a voz e voto nas assembleias de acionistas, garantido pela lei brasileira das Sociedades Anônimas.

Nessas ocasiões, o morador de Piquiá de Baixo e acionista da Vale Welen Pereira pôde expor perante os demais acionistas e também os representantes da Diretoria Executiva da empresa a situação vivenciada por sua comunidade, a responsabilidade da empresa e de seus acionistas e a disparidade entre, de um lado, os salários dos diretores e valores que a empresa vinha auferindo em termos de lucro e distribuindo como dividendos aos acionistas e, de outro, os valores que a empresa vinha se negando a contribuir para a efetivação do reassentamento da comunidade.
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Manifestação dos moradores do Piquiá de Baixo em luta pelo terreno para o reassentamento. Foto: Marcelo Cruz.

O projeto para o novo bairro

A estratégia da Associação dos Moradores do Piquiá e da Usina CTAH (sediada em São Paulo - SP) para a elaboração do projeto de reassentamento foi realizar o processo participativo em poucos encontros, cujo aproveitamento deveria ser máximo, com atividades ao longo de todo o dia e reuniões à noite. O processo de projeto participativo permitiu um diálogo franco entre a assessoria e as famílias, e além de aproximar as famílias do desenvolvimento técnico do projeto do futuro bairro, possibilitou à equipe da Usina compreender as particularidades da forma de morar desta região do país. Desse processo surgiu um projeto com tipologias variadas e áreas maiores que as comumente aplicadas no âmbito da habitação de interesse social, além de conjuntos e bairros dotados de infraestrutura e serviços de acordo com as necessidades e desejos da comunidade.

A proposta final do projeto de reassentamento estrutura o terreno de 38 hectares ao longo de um eixo que se configura como um calçadão arborizado e ininterrupto para pedestres e ciclistas, a partir do qual será possível acessar todos os equipamentos e espaços coletivos que serão implantados, assim como duas áreas verdes existentes que serão preservadas.

A integração com o bairro vizinho ao terreno do reassentamento, o Novo Horizonte, foi desde o início uma diretriz colocada enfaticamente pelos próprios moradores do Piquiá de Baixo, que buscavam compartilhar a futura infraestrutura e os equipamentos com os moradores ao lado. Assim, foram previstos nove equipamentos para servir aos dois bairros: Associação de Moradores, Clube das Mães, Mercado, Centro Esportivo, Creche, Escola, Memorial das Lutas do Piquiá, Unidade Básica de Saúde (UBS), Centro de Referência em Assistência Social e um núcleo do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos.

O arranjo dos lotes no desenho do reassentamento surgiu da observação do hábito dos próprios moradores do Piquiá: é no espaço público, em frente à casa – e preferencialmente sob uma frondosa árvore – que eles se reúnem com os vizinhos para conversar no final do dia e nos finais de semana. Assim, os lotes estão organizados em pequenos núcleos, que são dispostos de forma a configurar uma pequena praça a cada conjunto de 26 casas. Nestas praças será também cumprida a função de tratamento das águas servidas das casas; já que, não havendo rede de coleta e tratamento de efluentes na cidade de Açailândia, a solução encontrada foi o tratamento no local através de sistemas biológicos. O desenho do arranjo entre os lotes também guarda a ideia de incentivar o compartilhamento dos fundos de lote de diferentes casas entre integrantes da mesma família ou amigos, gerando espaços semipúblicos em comum.

Nesse sentido, o projeto desenvolvido junto à comunidade do Piquiá de Baixo aponta para outra forma de construir cidades, buscando oferecer aos trabalhadores um ambiente onde os mais diversos aspectos da vida estejam integrados – contrapondo-se aos grandes conjuntos habitacionais isolados, sem serviços públicos ou infraestrutura urbana. Trata-se, naturalmente, de uma forma alternativa de produção do espaço habitado, em oposição às modalidades dominantes – privadas ou estatais –, que segregam os trabalhadores, sujeitando-os a condições precárias de moradia.

Todo o processo de projeto do novo bairro foi apropriado pela comunidade como parte importante do processo de luta coletiva, forma de coesão social interna que colaborou intensamente na sua formação enquanto sujeitos políticos que sabem o que querem e têm potência de fazê-lo. As formas urbanas decorrentes dessa luta mostram uma experiência de autonomia na decisão e produção do habitat que é exemplo para todas as comunidades atingidas por processos de remoção forçada, no campo ou na cidade.

Depois de um ano da elaboração do projeto pelas famílias em conjunto com a assessoria técnica, em maio de 2013 ele foi finalmente aprovado na Prefeitura de Açailândia, e em novembro de 2014, aprovado junto à Caixa Econômica Federal, responsável pelo Programa Minha Casa Minha Vida Entidades – por meio do qual serão realizadas as unidades habitacionais e parte da infraestrutura, cujos recursos necessários serão complementados com um aporte da Fundação Vale e do Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa (Sifema).

A luta, portanto, ainda está em andamento e seu desenrolar em aberto. As conquistas da comunidade têm sido expressivas, sobretudo diante da desproporção entre a comunidade local e a indústria nacional/global, apoiada pelo Estado em seus três níveis. As reivindicações da comunidade do Piquiá de Baixo transcenderam a luta local e se tornaram uma bandeira maior que expõe a outra face dos programas desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo em que a luta alcança níveis internacionais (como o Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA), ela se costura no chão da comunidade, nas relações humanas diretas, como tão bem expressa a carta que o Sr. Edvard escreveu a seu neto Moisés:    

A beleza dessa luta é que a gente não cansa, e quando houver uma derrota, a gente reage com mais ânimo e convicção: é claro demais que a gente é vítima, há uma injustiça evidente! A lei não poderá se enganar: seremos ressarcidos! Às vezes também os avós se iludem e sonham que nem um jovem inexperiente... Afinal é a esperança que nos sustenta. Mas aprendi, Moisés, que a esperança é uma criança que precisa de duas irmãs mais velhas: a paciência e a sabedoria.
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Visita ao terreno destinado ao reassentamento.

A difícil luta contra o desenvolvimento predatório

Assistimos no mês de novembro de 2015 o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana-MG, o maior acidente ambiental do país e um dos maiores do mundo no setor da mineração. A empresa dona do complexo minerador, a Samarco S.A., fundada em 1977, é controlada por uma joint-venture entre a Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton. A lama tóxica tomou bairros e causou sérios danos ambientais no Rio Doce e suas adjacências, inclusive na sua foz, no Espírito Santo. Ironicamente, a Vale S.A., antiga Vale do Rio Doce, destruiu o vale e o rio que lhe deram o nome.

No momento, a Samarco, por meio de nota à imprensa, informa que “não poderá cumprir os compromissos financeiros com seus funcionários e fornecedores”, deixando quase três mil funcionários diretos e mais 2,4 mil terceirizados de cerca de cinquenta empresas sem segurança de receber salários e pagamentos e de manter seus contratos de trabalho e de serviço. No município de Mariana, são mais de seiscentas famílias desabrigadas diretamente, sem contar milhares que dependem diretamente do Rio Doce ao longo dos seus mais de 850 km de extensão. A mídia, porém, têm dado pouca atenção às formas de atendimento a esta população desabrigada e atingida.

Vemos mais uma vez se repetirem os problemas sociais estruturais causados por um modelo de desenvolvimento predatório da humanidade e da natureza, que não se resolve simplesmente através de multas e sanções. A experiência do Piquiá de Baixo nos mostra que um dos principais desafios é vencer o discurso do desenvolvimento a qualquer preço e da noção geral de que a violação à natureza e à vida das pessoas são um mal necessário. Aliado a isso, visibilizar e denunciar a participação das esferas públicas em associação direta com os grandes capitais (na proposta e na execução das políticas do desenvolvimento). Mesmo com todas as lutas e acordos, a Vale e toda a sua cadeia produtiva no Maranhão continuam operando normalmente, os volumes de extração mineral e também o polo siderúrgico estão se expandindo (com a construção de uma segunda ferrovia e de uma nova aciaria) e aparentemente não se está fazendo nada para diminuir a poluição. Veremos como será agora a continuidade das operações da Samarco, em Mariana, e as iniciativas visando à responsabilização da Samarco, da Vale, da BHP e do Estado.

A tendência a se resolver estes processos através de TACs está sendo implementada no Brasil a partir de uma tendência internacional e pode ser perigosa, porque implica impunidade na essência do problema e esta é a mola propulsora dos crimes do modelo de desenvolvimento capitalista. É uma maneira de se deslocar para o âmbito jurídico uma relação política, movimento este que se repete atualmente em todos os momentos de crise. A política é reiteradamente escamoteada, deslocada e minimizada em nome de uma suposta coesão social que trata como iguais (perante a Justiça) os desiguais.

O trâmite jurídico, forma atual de solução de crises, foi fundamental para dar consequência ao processo de reparação, mas não seria sequer iniciado sem a organização comunitária e a articulação política, e não teria prosseguimento sem elas [6].

Nesse aspecto, a experiência do Piquiá de Baixo se destaca. A organização de seus moradores têm feito com que as relações políticas, antes obscurecidas socialmente, se tornassem um aspecto central da vida da comunidade, que, em suas articulações, conseguiu fazer com que sua luta pelo reassentamento coletivo ganhasse relevo internacional. Essa rede de apoiadores é mobilizada pela comunidade em função da convicção de que o dano ambiental é fruto de um modelo de desenvolvimento excludente e suas consequências não são naturais. Os dizeres que estamparam em suas camisetas – “As vacas têm para onde ir, mas o povo do Piquiá não” [7] – demonstram claramente este entendimento. 


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Processo de projeto junto aos moradores: estudo das unidades habitacionais.
NOTAS

[1] A comunidade de Piquiá de Baixo está instalada na parte mais baixa de todo o bairro de Piquiá. Segundo os moradores mais antigos, o nome adveio de uma espécie florestal amazônica de grande porte que à época abundava na região, mas que logo acabou sendo devastada pela extração da madeira destinada à fabricação de móveis ou mesmo para servir de fonte de energia (carvão vegetal) para a produção de ferro gusa. Com a chegada das indústrias, o bairro foi convertido em distrito industrial e, desde então, na grafia oficial, o bairro vem sendo chamado de “Pequiá”, acrônimo de “Petroquímico Açailândia”. Para negar sua responsabilidade pelos danos causados à saúde dos moradores, as empresas de ferro gusa sustentam a versão de que a ocupação humana na região é posterior à instalação das indústrias. Adotamos neste artigo a grafia com a letra “i”, que é a utilizada pela comunidade de Piquiá de Baixo em seu processo de luta que inclui também a luta pelo reconhecimento de sua história.

[2] Implementado entre 1979 e 1986, o Programa Grande Carajás estende-se por 900 mil km² (área que corresponde a um décimo do território brasileiro), englobando o sudoeste do Pará, norte do Tocantins e oeste do Maranhão. Foi criado pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce, no governo Figueiredo.

[3] Foi previsto para o ano de 2015 a entrada em operação, no mesmo polo industrial, da aciaria “Aço Verde Brasil” (AVB), com uma capacidade inicial para produzir 600 mil toneladas ao ano de vergalhões e fio máquina. A AVB, assim como a Gusa Nordeste S.A., é também de propriedade do Grupo Ferroeste.

[4] Embora naquela época ainda não vigorasse o atual ordenamento jurídico, inaugurado com o advento da Constituição de 1988, já vigorava no Brasil a Lei Federal nº. 6938/1981, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente. Essa lei, em sua redação original, já previa, em seu artigo 10º, a obrigatoriedade do licenciamento ambiental para a "construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental". 

[5] Os termos “munha”, “moinha” ou “pó de balão” correspondem a um resíduo sólido incandescente composto por finos grãos de minérios, de carvão vegetal e de fundentes utilizados na produção de ferro gusa. Em Piquiá de Baixo, os depósitos em que se acumula esse material ficam próximos às casas das famílias. Isso tem provocado elevado número de acidentes. Cita-se como exemplo caso ocorrido em 1999, em que um menino com sete anos de idade foi vítima de queimaduras de terceiro grau em suas pernas, tendo vindo a óbito após 45 dias de sofrimento no leito do hospital público municipal. Um caso semelhante repetiu-se em 2013, sendo que nessa ocasião felizmente a criança sobreviveu.

[6] Ainda assim, é necessário lembrar que a Justiça, embora pareça abstrata, é feita por pessoas. No caso do Piquiá, foi fundamental contar com o apoio efetivo das instituições jurídicas (Ministério Público e Defensoria Pública) e o envolvimento dos promotores de Justiça e defensores públicos em vista da efetivação do reassentamento.

[7] Essa frase foi usada para combater a estratégia do proprietário do terreno desapropriado, que alegou falsamente que aquela era a única área que tinha à disposição para a criação de gado e que, portanto a desapropriação deveria ser anulada.



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