nota sobre a usina
sérgio ferro
Os trabalhos da USINA em mutirão têm provocado discussões. Me meto nelas.
É sabido, desde Engels, que a autoconstrução da casa operária provoca queda nos salários – pois a parte correspondente à moradia pode sumir no cálculo do preço da reprodução da força de trabalho. É preciso, entretanto, situar a teoria em terreno concreto. No nosso Brasil de hoje, a maioria das casas populares, dos barracos de favela, é feita em regime de autoconstrução, pura ou híbrida. Seriamente, não há quem possa supor, no interior do nosso lamentável salário mínimo, que haja alguma soma que corresponda efetivamente à que conviria a um item “moradia”, mesmo elementar. As camadas mais carentes da nossa população já sofrem com os efeitos negativos da autoconstrução. Mas elas não têm alternativa: há tempo, o poder político e econômico abandona a resposta aos problemas dos mais sofridos a eles mesmos. Não podemos, portanto, culpar as experiências semelhantes às da USINA – que aliás são numericamente marginais – por tal situação, é óbvio. É preciso, porém, considerar outros aspectos dessas experiências. Em primeiro lugar, há que lembrar que a autoconstrução coletiva (que já por ser coletiva distancia da autoconstrução individual dominante) pode remodelar as relações de produção, como no caso da USINA. Os projetos são debatidos por todos os interessados, há constante interação entre equipes, diluição de hierarquias, participação de profissionais que assim se qualificam, atenuação da divisão entre trabalho intelectual e manual, entre condutores e conduzidos; há submissão do partido técnico, da idéia construtiva de material, às capacidades dos produtores, eliminação de propostas perigosas ao trabalho, de produtos nefastos à saúde, etc. São mudanças aparentemente menores – mas essenciais. O objetivo determinante não é mais a produtividade cega – mas a realização de um projeto coletivo atento às condições e relações dignas de produção, e isto tem um peso. Se continuarmos a crer, como devemos, em mudanças sociais radicais, não bastará a apropriação jurídica dos meios de produção pelos produtores imediatos. Os malogrados ensaios de socialismo provam que é preciso ir além da simples posse – que sem profundas transformações das relações de produção, o projeto revolucionário fracassa. E não é possível deixar estas questões para depois de uma futura revolução. O outro já germina no seu contrário e pode ser prefigurado sob forma de sua negação determinada. Desde já, é possível ensaiar outras relações de produção, negadoras das atuais, em bolsões de menor pressão imediata do nosso sistema – apesar das precárias condições. As mil facetas das técnicas de dominação que impregnam todas as etapas da vida social têm que ser apontadas, isoladas, tratadas. Os canteiros de autoconstrução coletiva, autogeridos pelos trabalhadores, são laboratórios experimentais em que estas coisas podem, devem ser encaradas. As limitações que os marcam podem até adquirir valor positivo. Os meios precários, as condições produtivas atrasadas da construção, o papel secundário da tecnologia sofisticada e o central do “trabalhador coletivo”, permitem que a atenção convirja com mais facilidade para as questões relativas às relações de produção. Talvez por bairrismo profissional, creio que o canteiro será um campo privilegiado para ensaiar outro modo, mais humano, de trabalhar. Afinal o mestre Hegel dizia que o aufhebung é mais poderoso e fértil quando nega um extremo bem extremado – e o canteiro está no extremo da exploração violenta. É evidente que tais experiências têm a incerteza de toda antecipação, carregam muitas ambiguidades por serem forçadas a permanecerem quase sempre no interior da primeira negação, na reação ao que está aí. Mas mesmo assim, preparam caminho, chamam a atenção para essas questões, ousam propostas, testam alternativas. Mais: a autogestão na construção tem repercussões que saem do canteiro, atingem outros níveis da vida social. A cantina, a creche, o posto de saúde coletivos já avançam outras pistas. A surpreendente e numerosa presença das mulheres na construção estremece o machismo tradicional, a ideologia dos sexos. As negociações para obtenção do terreno, de financiamento, de compra, etc., fortalecem a perspectiva socializante destas iniciativas. E etc., etc., etc.. Ainda no caso da USINA a mistura de tecnologia avançada (estrutura metálica em vários níveis) com procedimentos bastante primitivos por vezes, rompe com a associação comum entre tais canteiros e pobreza técnica. O preconceito subjacente a esta associação talvez seja de considerar que os pobres tem que se “virar” com sobras e coisas elementares quando cuidam de si, como o sistema os obriga – deixando a produção séria para gente séria. O miserabilismo é coisa de rico. Se for possível, não há porque evitar soluções técnicas avançadas nos canteiros dos autoconstrutores: o pólo hegemônico aqui não são as forças e meios de produção mas, repito, as relações de produção. Todas estas tentativas têm suas contradições – e seria miragem se as evitassem. As “pobres almas” guardam suas pobreza não agindo, mãos no bolso, bem limpinhas. Guardarão talvez o reino dos céus. Mas para mudar as coisas aqui há que por a mão na massa e aceitar a complexidade irritante das coisas, a possibilidade de erros – e de acertos cuja verdade só será demonstrada, de qualquer modo, em etapas posteriores. Salvador, novembro de 2004. |
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