mutirão paulo freire: movimento popular, arquitetura e pedagogia da práxis
USINA
Participaram diretamente da redação deste ensaio: Beatriz Tone, Cristiane Lima, Heloísa Resende,
Jade Percassi, Pedro Fiori Arantes, Roseane Pinheiro e Sandro Barbosa O cenário dos acontecimentos São Paulo na virada do século XXI é uma paisagem de disparates e incongruências, formada por arranha-céus “inteligentes” implantados em avenidas sem esgoto, barracos com antenas parabólicas, malabaristas diante de carros blindados no congestionamento, venda incessante de quinquilharias contrabandeadas, bunkers de consumo e de cultura da elite cercados por mares de miséria, máfias controlando serviços públicos, narcotráfico consumindo jovens das periferias, igrejas evangélicas pentecostais por todos os cantos, neofilantropia do terceiro setor, pontes cenográficas feitas para a especulação imobiliária, etc. Essa heterogeneidade e hibridez exacerbada são elementos próprios ao nosso capitalismo à brasileira, que se reconfigurou parcialmente nas últimas duas décadas e foi batizado pelo sociólogo Chico de Oliveira com a metáfora do “Ornitorrinco” [1]. Na São Paulo globalizada, os extremos de riqueza e pobreza seguem se distanciando a tal ponto que parece não haver entre eles mais nada em comum. A imagem de uma minoria globalizada que se locomove em carros blindados, habita, consome e trabalha em espaços fortificados, não poderia deixar de ser a melhor metáfora da transformação pós-desenvolvimentista da elite nacional em classe rentista e financeirizada. Ao mesmo tempo, os barracos das favelas paulistanas e a imensidão de casas autoconstruídas – nas encostas, beiras de córrego, margens de represas de abastecimento de água – são mais uma expressão concreta da nossa “evolução truncada”. O transitório que se tornou permanente deu-se pela troca dos tapumes pelos tijolos baianos, utilizados à exaustão em nossas periferias. Figuração de uma situação que se pretendia passageira, uma precariedade temporária – até que as condições de vida melhorassem – são hoje a realidade para a maior parte da população. A Associação de Construção Comunitária Paulo Freire – batizada em homenagem ao grande educador brasileiro [2] – é fundada em 1999, nesse contexto quase apocalíptico. Agravado por sete anos de governos municipais e estaduais conservadores, que combateram as políticas públicas implantadas na gestão do Partido dos Trabalhadores de 1989-92 e criminalizaram movimentos sociais e técnicos que delas participaram. A emblemática e trágica gestão de extrema direita de Paulo Maluf (1993-96), político herdeiro do regime militar, encerrou a política de mutirões autogeridos, processou gestores da Secretaria de Habitação do PT e fez uma devassa na conta das associações comunitárias – todas elas absolvidas, ao final. O gangsterismo se apossou da cidade em diversas obras públicas, desapropriações, despejos e ações de pilhagem e especulação imobiliária acintosas. O movimento de luta por moradia na cidade constituiu o “Fórum dos Mutirões”, reunindo mais de 50 associações para reivindicar que as obras interrompidas pudessem ser concluídas – mas mesmo assim não obteve sucesso. A resposta conservadora foi um programa habitacional definido em conjunto com construtoras associadas ao financiamento de campanhas e uma equipe de marketing que desenhou os edifícios, definiu onde implantá-los e batizou o programa com o nome Cingapura. Tratava-se de uma política de construção de conjuntos habitacionais em avenidas de grande fluxo, encobrindo as favelas existentes com edifícios do tipo parede/outdoor. Arquitetura de má qualidade, com toques de fachada marketeira, apartamentos mínimos e recursos destinados a empreiteiras amigas [3] De certo modo, uma atualização de aspectos da política habitacional do regime militar, que havia sido parcialmente sepultada na gestão Erundina [4] – na qual os mutirões autogeridos (baseados em projetos discutidos com as famílias, unidades maiores, obras organizadas pelos beneficiários, etc.) representavam a transformação e democratização da política habitacional como elemento do projeto democrático-popular para o Brasil pós-ditadura. No Cingapura estavam novamente no esquema: construtoras ligadas a campanhas políticas, corrupção, escolha discutível de prioridades, prédios padronizados com apartamentos exíguos – num processo simultâneo de sedução eleitoral (o sonho da casa própria) e humilhação social. Paulo Maluf elege em 1996 seu sucessor, Celso Pitta – depois condenado por crimes de corrupção, evasão de divisas e formação de quadrilha. Entre 1997 e 2000, durante toda a gestão, os movimentos de moradia que atuam no centro de São Paulo estiveram especialmente ativos, ocupando dezenas de imóveis vazios, inadimplentes dos impostos municipais, prédios públicos sem uso, enfim, edificações que acintosamente não cumpriam sua função social. Esse é também um momento de ascensão de movimentos e grupos envolvidos na luta anti-capitalista e anti-globalização (cujo marco foi o levante de Chiapas em 1994) e, no caso brasileiro, contra o programa de ajuste neoliberal implementado durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A partir de 2001, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre (cidade por mais de dez anos administrada pelo PT e que enunciava um novo tipo de gestão pública participativa) torna-se um espaço de encontro e articulação dessas forças de esquerda reanimadas. O final dos anos 1990 é também o período mais criativo e combativo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se apresenta como grande alternativa popular ao projeto das elites – tornando-se referência para as demais organizações –, e de espraiamento das ações urbanas em diversas capitais do país. Essa ascensão de massas, local, nacional e global resultou em mudanças importantes na correlação de forças. Na América Latina com os chamados governos revolucionários ou da nova esquerda e a derrubada nas ruas do neoliberalismo na Argentina, no Brasil com o Fórum Social e a eleição de Lula em 2002, em São Paulo com a eleição de Marta Suplicy do PT em 2000. Na Universidade de São Paulo (e não só), o movimento estudantil se reanimava igualmente, os centros acadêmicos estavam ativos, havia disputa pelo diretório central dos estudantes entre grupos de esquerda e a extensão universitária se apresentava como aposta para democratizar e renovar o conhecimento, procurar alianças com movimentos sociais e encontrar o Brasil real. Na USP o marco foi o ano de 1998, em que se realizou o 1º Encontro entre militantes de movimentos sociais e estudantes universitários – resultado de outras iniciativas como a Incubadora de Cooperativas, o Laboratório de Habitação, o Fórum Centro Vivo, o Curso de mutirões, o Laboratório de requalificação de cortiços etc. No âmbito específico das políticas urbanas, 2001 foi o ano de aprovação do Estatuto das Cidades, legislação nacional de iniciativa popular que, após uma década de discussão pública e no Congresso, regulamentava os artigos da Constituição Federal para fazer cumprir a função social da propriedade urbana (taxação progressiva, urbanização compulsória, direito de propriedade aos ocupantes há mais de cinco anos etc), facilitando a efetivação de uma reforma urbana. É assim que a história da Associação Paulo Freire, por um lado, nasce num momento de embate entre forças conservadoras (o malufismo como herança autoritária do regime militar), neoliberais (representados sobretudo pelo partido de FHC) e, de outro lado, movimentos sociais em crescente organização e combatividade, movimento estudantil renovado e o PT com novas vitórias eleitorais, finalmente emplacando Lula presidente (em que pesem as concessões feitas para tanto). Pode-se afirmar, que na virada de século a luta de classes estava escancarada no Brasil, com grupos organizados e atuantes em embates contra governos anti-populares de diversos matizes. A Associação Paulo Freire é herdeira desse momento de ascensão de massas e foi, em 1999, ainda na gestão Celso Pitta, o primeiro grupo do movimento popular a assinar o contrato para uma obra de 100 apartamentos a serem projetados e construídos em autogestão desde o final da gestão Erundina, do PT, em 1992. Se o mutirão autogerido não era mais o símbolo do projeto democrático popular em exercício direto (o povo construindo sua casa, sua cidade, seu partido, seu país...), como nos anos 1980, ele recobrava parcialmente seu sentido original num contexto de retomada das lutas populares, combate ao projeto neoliberal e às políticas habitacionais dominadas por construtoras e políticos conservadores. Havia ali um sinal de que o povo organizado poderia voltar a ser sujeito de sua história, pegar o destino em suas próprias mãos e, por ação direta, retomar o curso do projeto popular pós-neoliberalismo. Contudo, como veremos adiante, essa ascensão de massas na virada do século não resultou na realização do programa democrático-popular e na extinção do neoliberalismo, mas numa modalidade de “capitalismo para todos”, resultante da aliança do grupo dominante no PT, por meio da figura carismática de Lula, com interesses de diversas frações do capital. Passada a fase ortodoxa e monetarista do governo Lula, é a idéia-força de desenvolvimento que agrupa interesses divergentes de classe num único e mesmo projeto de modernização acelerada com certa inclusão social (via mercado ou políticas sociais focalizadas), sem mudanças estruturais ou distribuição de riqueza. A luta pela democratização das cidades e sua reforma urbana amparada pela nova legislação do Estatuto da Cidade (2001) esbarra, como outras leis com aspectos progressistas, nos interesses locais das elites, no caso, da cidade como sua órbita de valorização patrimonial. Os instrumentos do Estatuto só são implementados quando aprovados e regulamentados localmente em Planos Diretores Municipais, o que significa que dependem da correlação de forças nas Câmaras de Vereadores – quase sempre favoráveis aos proprietários de imóveis, muitos deles parlamentares ou financiadores de campanhas. A taxação progressiva de imóveis que não cumpram sua função social, por exemplo, foi pouquíssimo efetivada, isso para não falar da urbanização compulsória dos vazios urbanos especulativos. A aplicação seletiva da lei destacou no Estatuto os instrumentos que eram de interesse do capital imobiliário, como as Operações Urbanas que favorecem a concentração de recursos em áreas da cidade comandadas pelo mercado. Com a operacionalidade parcial do Estatuto e a incapacidade de regulação social da produção do espaço urbano, o modelo de crescimento das cidades e de provisão de moradias passa a ser cada vez mais dirigido pelos interesses das empresas privadas (não apenas órbita das elites locais, mas infladas com abertura de capital na bolsa e a entrada de investidores estrangeiros) sob a lógica especulativa financeira que comanda o restante da economia e das contas públicas. O grande projeto habitacional brasileiro em curso (que prevê a construção de 3 milhões de moradias) não foi, como imaginavam alguns [5], a multiplicação de obras autogestionárias, mutirões e cooperativas, mas um programa de oferta direta em grande escala pelas empresas privadas, segundo o modelo do Banco Mundial aplicado no Chile e México, e aqui batizado de “Minha Casa, Minha Vida” [6]. O resultado tem sido a multiplicação de grandes conjuntos habitacionais periféricos, com um mar de casinhas padronizadas e pré-fabricadas, repondo o padrão de produção-segregação-especulação do regime militar, alavancado por recursos públicos, dos trabalhadores e, agora, do mercado financeiro internacional. Nesse programa, nenhuma instância da política habitacional é mobilizada para garantir a regulação e o interesse público. O “Minha Casa, Minha vida” ignora e não corresponde ao Sistema Nacional de Habitação Social (SNHIS), aos Conselhos das Cidades e do Fundo Nacional de Interesse Social (FNHIS), ao próprio Fundo, ao Plano Nacional de Habitação (Planhab), ao Estatuto das Cidades e ainda desconsidera a prerrogativa estatal de definir e contratar projetos, licitar e, por fim, decidir a forma e direção de crescimento das cidades. Estamos diante consumação da entrega da política habitacional a empresas privadas, resultando numa anti-reforma urbana, que gerou uma espiral especulativa no preço da terra e dos imóveis em todas as cidades brasileiras. É nesse contexto que o mutirão Paulo Freire, depois de uma árdua luta para existir e construir, é inaugurado em 2010, ano de implementação efetiva do “Minha casa, minha vida” e da eleição de sua mentora, Dilma Rousseff – dando continuidade ao pacto de dominação-integração do “capitalismo para todos”. Desse modo, a história que vamos narrar está enquadrada (mas não conformada), por um momento de emergência das ruas, de erupção de energias utópicas, ações diretas, resistência e invenção de alternativas, no fim dos anos 1990, e o momento atual do Brasil, como país emergente no mercado internacional, que garante altas taxas de lucratividade com estabilidade política, econômica e, sobretudo, social. Na sua inauguração, a obra da Associação Paulo Freire pode ser vista como uma experiência política-social-arquitetônica sem chão histórico. Após uma longa e tortuosa trajetória, ao mesmo tempo em que conseguiu concluir as 100 moradias, já não tem o significado de uma experiência que possa resumir, em seu microcosmos, um projeto maior de auto-organização dos trabalhadores como método de transformação histórica. Não representa, como no início nos anos 1990, a possibilidade de um projeto social baseado na construção de poder popular como motor da história – pois parte dos agentes e instrumentos políticos que lhe dariam sentido e amplitude estavam agora, no governo federal, capitaneando outro modelo de integração social e desenvolvimento econômico, nos marcos do mercado. Nesse sentido, a obra do mutirão Paulo Freire é um evento que já pode ser visto em perspectiva histórica, como nos propomos nesse artigo. Os protagonistas se encontram A Associação Paulo Freire em 1999 foi fundada em São Paulo, composta por 100 famílias oriundas de 14 grupos de origem do Movimento Sem Terra Leste 1, filiado à União Nacional de Movimentos de Moradia. Os grupos de origem são a porta de entrada no movimento de moradia e seus núcleos de base. Eles estão organizados em diversos bairros da cidade e se agrupam regionalmente em função do movimento do qual participam. Tais grupos, coordenados por lideranças populares, muitas vezes amparados por Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais da Igreja Católica, fazem suas reuniões em paróquias e salões comunitários. As famílias entram nesses grupos convidadas por amigos, parentes, vizinhos ou mesmo após serem informadas da sua existência na missa que frequentam. Estão ali pela necessidade de ter uma casa digna, o quanto antes. São famílias, em geral com renda inferior a dois mil reais (mil dólares mensais), que aguardam há anos na fila da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação da Prefeitura de São Paulo) e CDHU (Companhia de Desenvolvimentos Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), [7] muitos em situação crítica de moradia: risco de despejo, não suportam mais o aluguel, não querem ou podem mais depender de favores, moram em situação de sobrelotação habitacional, cortiços, favelas etc. Nas primeiras reuniões no grupo de origem, o movimento de moradia é apresentado como alternativa popular às vias oficiais do governo e ao mercado formal, que não atende as faixas de renda mais baixas [8]. A formação de base nos grupos de origem é diversificada. Discute-se a política de habitação, o porque de governo e mercado não solucionarem a falta de moradia, apresenta-se a bandeira de luta do mutirão com autogestão [9] e como é administrada uma obra do movimento. Além das conversas, são feitas atividades mais práticas: visitas a mutirões em obras ou concluídos; festas, rifas e bingos para arrecadar recursos; passeatas e manifestações, até ocupações de terra e imóveis, algumas delas com permanência prolongada enquanto acontecem negociações com o governo. Nas ocupações, quase sempre feitas em sigilo e de madrugada, “o povo vai, mas leva um susto”, comenta Cristiane: “Nossa, isso é certo? Somos bandidos?”, nos perguntamos num primeiro momento, quando portões ou muros são derrubados e entramos. É um choque, pois a ocupação de um imóvel vazio, que não cumpre sua função social e muitas vezes sequer paga impostos – e que deveria ser alvo de reforma urbana –, é transgressão de propriedade, criminalizada. Logo chegam viaturas da polícia, vereadores, advogados, imprensa. Lideranças são levadas para a delegacia para a autuação do flagrante. As famílias entrincheiradas atrás dos muros e grades vão construindo laços de solidariedade. Identificados, há controle de entrada e saída, monta-se a cozinha comunitária, o espaço infantil, os banheiros são postos para funcionar, e barracões vão sendo construídos. Há toda uma tecnologia social da ocupação que os movimentos foram desenvolvendo para esse momento de tomada de imóveis e terrenos. Depois dos primeiros contatos com polícia, advogados e parlamentares, aos poucos a descontração volta a reaparecer, em clima de “festa de sem-teto” [10]. Nas ocupações, os grupos de origem atuam coordenados pelo movimento que, por vezes, se articula em sua União para realizar ações simultâneas em várias partes da cidade, de modo a aumentar o seu poder de pressão sobre o Estado, opinião pública e proprietários. Além dos grupos de origem, comparecem famílias que estão com seus mutirões interrompidos ou em obras, famílias que já finalizaram suas casas, lideranças, assessores técnicos, parlamentares e apoiadores. Há um enorme aprendizado do que está em disputa – o conflito é ali visível, a luta por moradia aparece como algo concreto. As negociações podem avançar ou não, até o momento da saída da área, seja pacífica ou com a ação violenta da tropa de choque. Contudo, para uma parcela significativa da base é a pontuação que as famílias recebem por atividade o que motiva a presença no local. São os pontos que garantem o ingresso nos novos projetos: as famílias de cada grupo de origem com mais pontos acumulados (por presença em reuniões, atos, ocupações e pela contribuição mensal ao movimento) poderão escolher primeiro em qual projeto habitacional ingressar. O sistema de pontos é, assim, um instrumento de aferição da presença e participação que mede o empenho e o mérito das famílias que serão primeiro atendidas. Com isso, o movimento evita o sorteio (o acaso), como faz o governo, ou, o que é pior, o apadrinhamento e favorecimento de alguns em detrimento de outros. Na primeira reunião do seu grupo de origem Rose lembra que “não acreditou muito” que dava certo. Só depois que o grupo foi levado à Fazenda da Juta [11], na obra do Portal da Juta, “fiquei paralisada vendo aquelas senhoras trabalhando, carregando carrinho de terra, meu Deus. Não achei que seria maravilha não”. Porque viu, passou então a acreditar que ia ter a moradia daquela forma, trabalhando: “se aquela senhora pode, eu posso”. Cristiane já conhecia obras de um mutirão quando ingressou no seu grupo de origem. No começo não tinha conhecimento da política autogestionária, durante o processo percebeu que no mutirão se trabalhava com gosto, diferente do trabalho no Mc Donald’s onde foi funcionária. Entendeu que a autogestão é uma forma de garantir a melhor qualidade dos empreendimentos já que que o lucro que iria para construtora se transforma em melhor qualidade dos empreendimentos, “quando administramos recursos públicos mostramos que fazemos melhor que o governo com o mesmo dinheiro, esta aí o grande números de mutirões que a Leste 1 já fez e continua fazendo”. É desse modo que passa a ser assimilada a “alternativa” do mutirão, entre a resignação e o progressivo entendimento do desafio posto: o de se tornarem sujeitos ativos na implementação da política pública e na definição da qualidade de sua moradia, atuando no projeto, gestão e construção, recebendo o financiamento nas próprias mãos e substituindo a construtora e os projetistas do Estado. Quando as obras são visitadas, outro aspecto que chama a atenção dos ingressantes no movimento são os prédios em construção. A maioria das famílias entra no grupo de origem com a esperança de ter a casa em um lote unifamiliar. Morar em apartamento não é o desejo da maior parte – uma vez que, apesar da qualidade construtiva dos mutirões, prédios remetem ao “morar numa Cohab”, conjuntos habitacionais segregados e periféricos construídos para os trabalhadores desde o regime militar. Cabe ao movimento explicar (ou se resignar) que “em São Paulo agora é assim”, com o aumento do preço da terra, o crescimento da cidade e a conquista de lotes menores, é preciso atender as famílias com menos área de terreno per capita. O poder público também condiciona o atendimento à chamada “verticalização”. Como veremos, o mutirão Paulo Freire é um exemplo de edificação de alta densidade, com prédios de até sete andares, em um lote exíguo e periférico, conquistado pelo movimento na gestão Pitta. Se a escolha do morar em apartamento não é opção – mais uma condição que as famílias devem aceitar e se adaptar –, ela passa a ser trabalhada pelo movimento e seus técnicos como a possibilidade de pensar a moradia coletiva favorecendo a organização comunitária, o que não estava ocorrendo nos antigos loteamentos de casas unifamiliares, nos quais a fragmentação e o individualismo prevaleciam. Mais uma vez, o que é adversidade ou falta de alternativa (como o trabalho compulsório) é enfrentando pelo movimento e seus técnicos como potencialidade para o fortalecimento dos grupos em sua capacidade de ação coletiva. Uma outra angústia constante nos grupos de origem é a duração do processo: “Quanto tempo leva para ter a casa?”, é a pergunta de todos ante o desespero de suportar por mais anos sua situação precária. Os coordenadores dos grupos prometeram prazos curtos, acreditando que a política de mutirões voltaria ao ritmo acelerado da gestão Luiza Erundina. Mas não foi assim. Na verdade, no final dos anos 1990, depois de oito anos de interrupção da política municipal de mutirões, o tempo de duração das novas obras era incerto. “Mesmo assim, eu decidi ficar”, lembra Cristiane, “nem que levasse 20 anos”. O controle do tempo e do fluxo de liberações é um dos grandes limites da experiência, como veremos adiante. Segundo Cristiane, “já sabíamos que não ia ser fácil, pois o que mais maltrata não é o trabalhar e sim o esperar [as liberações de recursos]”. No caso da Associação Paulo Freire, a escolha da execução dos edifícios em estrutura pré-fabricada de aço foi aceita pelas famílias sobretudo como meio de redução do tempo de obra – e mesmo assim a economia de tempo foi perdida com as inúmeras paralisações de repasse e boicotes que a Associação sofreu. Em 2003 a placa da Prefeitura posta diante do terreno do mutirão Paulo Freire indicava tempo de execução de um ano e oito meses – foi concluída em 7 anos. Além do tempo de obra, há o tempo de espera nos grupos de origem, que pode ser de meses a anos, dependendo da pontuação de cada família e do ritmo de novas obras conquistadas pelo movimento. Quando as famílias são transferidas para as Associações de Construção em formação inicia-se um novo ciclo de aprendizado. As Associações são constituídas no momento em que o movimento conquista, dentro do programa de mutirões, um terreno e a promessa de uma linha de financiamento. Elas têm estatuto social e figura jurídica para assinatura de convênios com o poder público. É eleita uma coordenação, com cargos e mandato, é feita a gestão de recursos com prestação de contas, atividades de formação, de discussão de projetos e preparação para a obra – das quais trataremos adiante. Para iniciar os trabalhos técnicos, a Associação Comunitária deve então escolher um grupo de assessoria externo para acompanhá-la em toda a sua trajetória, até o fim da obra. As chamadas “assessorias técnicas” são grupos interdisciplinares de profissionais, com a predominância de arquitetos, além de engenheiros e técnicos sociais, que atuam conjuntamente com os movimentos de luta por moradia. Sua história remonta à militância desses profissionais nas periferias de São Paulo desde o final dos anos 1970, seja atuando individualmente, pela Cooperativa do Sindicato dos Arquitetos, pelo nascente Partido dos Trabalhadores ou ainda por Laboratórios Universitários. Em 1989, na gestão Erundina, os grupos de profissionais foram oficialmente integrados à política pública de habitação, sob a forma jurídica de Entidades civis sem fins lucrativos [12]. A Associação Paulo Freire, sob a orientação do movimento Leste 1, escolheu a Usina como parceira, dentre três equipes técnicas que foram entrevistadas e apresentaram sua metodologia de trabalho. “Naquele momento não tínhamos como saber [como era o trabalho da Usina]”, afirma Cristiane, “nosso aprendizado político veio só depois. Hoje sabemos diferenciar o trabalho das assessorias.” A Usina surgiu em 1990, no contexto em que mais de vinte grupos como este foram montados para integrar a política de habitação com autogestão na administração petista de 1989-92. Um dos principais aliados e parceiros da Usina foi o Movimento Sem-terra Leste 1, filiado à UMM, e que surgira no final dos anos 1980 a partir de um núcleo sindical na Móoca e da Pastoral da moradia no Belém. Com a Leste 1, a Usina realizou os projetos e obras dos mutirões 26 de Julho, União da Juta e Juta Nova Esperança. Desde o início do trabalho da Usina com o Mutirão Paulo Freire em 1999 até a conclusão da obra em 2010, foram diversos os profissionais da assessoria que colaboraram, seja compondo a equipe principal de projeto e obra ou nos “mutirões” no escritório para conclusão de muitas etapas de desenvolvimento de projeto [13]. Estiveram à frente do processo durante a maior parte deste tempo os arquitetos Beatriz Bezerra Tone, Heloisa Diniz de Rezende, Pedro Fiori Arantes e a cientista social Jade Percassi. Beatriz, Heloisa e Pedro, formados pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo entre os anos 2000 e 2002, fazem parte da geração subsequente a dos arquitetos “engajados” dos anos 1980 – que estiveram envolvidos na luta contra a ditadura, na militância nas periferias, na fundação do PT, nos Laboratórios de Habitação e que atuaram, seja no poder público ou como assessores técnicos, nas políticas de mutirões autogeridos da administração Luiza Erundina [14]. A atuação em políticas públicas e/ou apoiando movimentos populares é uma opção minoritária entre os recém formados na FAUUSP historicamente. De forma geral, explica Pedro, “a perspectiva profissional que ainda prevalece é voltada a um trabalho autoral, em escritório próprio, concorrendo a prêmios e concursos, para ‘fazer o nome’”. A dedicação a projetos de habitação popular, urbanização de favelas e bairros periféricos, recuperação de áreas de risco ou degradadas é vista com certo desdém, como trabalho técnico preso à escassez de recursos e ao reino banal do atendimento às necessidades elementares. O arquiteto “que se preza” quer realizar “propostas de espírito”, obras em que possa demonstrar toda a sua destreza artística e projetual, quase sem limites, como em mansões burguesas, lojas de grife, museus, sedes de organizações, palácios – ou seja, edificações com grandes orçamentos e forte caráter simbólico. Beatriz, Heloísa e Pedro experimentaram, como outros colegas da mesma geração e que passaram pela Usina, outras assessorias técnicas e órgãos públicos, atividades extra-curriculares mais ou menos comuns: a participação no movimento estudantil, a formação do Laboratório de Habitação do Grêmio (GFAU), o Laboratório de projetos em Cortiços, visitas a mutirões e grupos de estudos com o professor Jorge Oseki, a retomada da tradição crítica em torno da figura de Sérgio Ferro, a participação em revistas acadêmicas, a integração com o movimento estudantil da FFLCH e com a Incubadora de Cooperativas coordenada por Paul Singer, acompanharam ocupações dos movimentos de moradia no Centro de São Paulo, participaram do Fórum Centro Vivo, estiveram nos debates do novo Plano Diretor Municipal, fizeram formações com o Movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST), realizaram intercâmbio político-cultural com outros países da América Latina etc. Jade, a cientista social que acompanhou a obra até sua conclusão, vem de um grupo político no movimento estudantil que se aproximou dos movimentos populares sobretudo por meio da extensão universitária. Segundo Jade, “aqueles eram anos em que o debate estava fervendo na USP, um momento diferente, mas similar, vinte anos depois, ao da primeira geração no fim dos anos 1970, com laboratórios e militância nas periferias”. Jade fora da gestão Gota d´água do Diretório Central dos Estudantes (DCE), organizadora do Encontro Universidade e Movimentos Populares, do Curso de extensão em Mutirão, participara da fundação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP. Fez parte de diversos desses grupos de extensão, favorecendo seu intercâmbio e diálogo: cursinho popular, cooperativas, gestão de equipamentos públicos, educação infantil, desenvolvimento rural com mulheres etc. Seu ingresso na Usina deu-se inicialmente para participar do projeto de fortalecimento do Fórum dos Mutirões, articulação de luta pela retomada das obras dos mutirões interrompidos que a Usina apoiava. O cruzamento de trajetórias entre esses universitários e os integrantes dos movimentos populares, ambos uma segunda geração na luta por moradia e reforma urbana em São Paulo, se deu em diversas ocasiões. Uma delas, que antecipava o encontro efetivo que ocorreria no mutirão Paulo Freire, ocorreu em 1997, na emblemática ocupação do Casarão Santos Dumont – que deflagrou uma série ocupações de prédios vazios em São Paulo naqueles anos. Ali estavam Pedro, estudante de arquitetura que realizava seu primeiro projeto de habitação em uma ocupação de sem-teto, e Cristiane, uma jovem recém ingressada no movimento de moradia e que tomava parte de sua primeira ação direta. Na ocasião, ambos não se conheceram, mas iriam passar a trabalhar juntos por mais de uma década. Cristiane viria a ser a caseira, apontadora e compradora da obra da Paulo Freire e uma de suas principais lideranças. Ela e o marido, Francisco, haviam recém ingressado num grupo de origem do Movimento Leste 1 e aquela era sua iniciação na luta por moradia. Cristiane, na ocasião com 23 anos de idade, já trabalhara em uma fábrica de meias, como embaladora, e no Mc Donald’s. Ao relembrar, depois de se tornar liderança do mutirão Paulo Freire, seu trabalho na empresa de fast-food, percebeu que lá também havia um sistema de rodízio de funções como no mutirão, mas com sentido oposto: “no mutirão a gente faz com gosto, construir a sua moradia, tudo é um aprendizado; no Mc Donald’s você é obrigado, a chefia é rígida, inspeção, dia de stress, cheio de hierarquias, tinha a questão da produtividade, do tempo, rapidez, lanches que passam do tempo vão pro lixo. No Mc Donald’s o rodízio é dos subalternos, sem poder de decisão”. Além de Cristiane, outras duas lideranças se destacaram nesse processo, Roseane e Djalma, com trajetórias diferentes, ora combinadas, ora opostas entre si. Djalma foi o primeiro coordenador executivo da Associação Paulo Freire e o último (no momento da auto-inauguração da obra pelas famílias); Roseane fora coordenadora por duas gestões ao longo da obra. Djalma tornou-se coordenador com 24 anos e nunca se intimidou com o papel de liderança e a condução de assembléias. Ele já se virara fazendo de tudo em São Paulo: trabalhara em farmácia, açougue, comércio, fora promotor de vendas em supermercado e por fim realizava um curso de operador de Raio X. Abandonou a profissão por passar mal com os efeitos da radiação a que era exposto. Em sua trajetória no movimento, além de coordenador da Paulo Freire e comprador da obra por um período, participou da Executiva da Leste 1, foi Conselheiro municipal da criança e adolescente (CMDCA) e atualmente participa de projetos na área de cultura e economia solidária. Roseane era uma senhora calada nas assembléias que logo se tornou uma liderança ativa e desenvolta, “fiquei com medo terrível quando fui eleita coordenadora: meu Deus, onde me meti! Era dona de casa e explorada num restaurante e agora ia coordenar uma obra para cem famílias!”. Rose já trabalhara em uma loja de roupas na Rua Direita e em um Laboratório farmacêutico, diante de uma incessante esteira fordista de produção (colocando tampinhas, colheres, adesivos, embalagens, bulas etc). Naquele momento trabalhava em um restaurante, cerca de doze horas ao dia, como ajudante de cozinha e também recepcionista. Cuidava da casa e de duas filhas. No início, nas assembleias “sentava e ficava só ouvindo”. Tudo mudou a partir do dia de eleição da nova coordenação, em abril de 2002, quando a indicaram para o cargo de coordenadora executiva. “Não tinha idéia do que era liderar. Fui participando, achava as reuniões confusas. Até que fui aprendendo. Aprendi a defender a Paulo Freire diante das críticas dos outros. Falei como representante das famílias. Caiu a ficha. Aí comecei, agora é assim. Depois fui para a Executiva, para discutir e planejar. Aprendi muito, viajei para Brasília, para os encontros, aprendi a dialogar sobre todos os assuntos. Movimento não é só a moradia, entram os direitos da mulher, da criança, do idoso...” Os personagens desse segundo ciclo dos mutirões em São Paulo e o contexto de seu reaparecimento estão apresentados. Vejamos agora como se organizaram a Associação Paulo Freire e a Usina para projetar e construir seus prédios – e as adversidades que os aguardavam. Desenhando um roteiro conjunto Entre 1999 e 2001, as ações conjuntas da Paulo Freire e da Usina estiveram mais no plano da resistência, reivindicação e ocupações de terra do que propriamente elaborando projetos e construindo. Foram inúmeros atos anti-Pitta e pelos novos mutirões; negociações na Prefeitura; defesa do projeto próprio; ocupação de imóveis vazios na Mooca e Vila Prudente; ato e abraço simbólico do terreno onde se construiu o mutirão; construção do barracão no fim da gestão Pitta para tomar posse do terreno. Na gestão Marta, novas rodadas de negociações, assinatura do aditamento; primeiras distensões com o PT e busca de autonomia etc. Foram anos de aproximação política entre a Associação Paulo Freire e o coletivo da Usina, mais do que de trabalhos técnicos. Anos que constituíram, de fato, a aliança política de um grupo com o outro e selaram a confiança recíproca para que fossemos juntos até o final, enfrentando todos os obstáculos. Durante a gestão Pitta, a administração tentou forçar a associação a abdicar de um projeto próprio e executar um edifício do modelo Cingapura, o que seria uma imensa derrota política e simbólica. O terreno conquistado, com 3,3 mil m2, em Cidade Tiradentes, ficava num imenso conjunto habitacional de reassentamento de famílias removidas por obras públicas: o Conjunto Inácio Monteiro, cujos edifícios eram do padrão Cingapura, com apenas 42 m2 de área construída por apartamento. As reuniões com o poder público não eram fáceis. Veja-se o exemplo dos seguintes encontros, relatados num dos livros ata da Usina: Reunião na Prefeitura no dia 27 de julho de 1999: Evaniza (Movimento Leste 1) – As famílias pleiteiam a opção pelo projeto próprio. Já iniciaram a discussão. Luiz Henrique (Secretaria de Habitação) – A área foi dada para o movimento com esse pressuposto [de aceitar o projeto padrão da prefeitura, o Cingapura]. Cria um problema ser diferente, a estética, o tamanho. E a área de vocês ainda está bem no meio [do Conjunto Inácio Monteiro]. João Marcos (Usina) – O projeto de vocês tem metade dos apartamentos voltados para sul [que não batem sol, é proibido pela legislação abrir janelas de permanência prolongada para sul] Luis Henrique – Se a gente soubesse que vocês queriam fazer projeto próprio a gente não teria dado essa área. A gente não pode deixar o lote vazio para vocês [fazerem o que quiserem]. João Marcos – A principal razão do nosso projeto é a participação. Sem ela não faz sentido. Luis Henrique – Vocês conhecem o novo Cingapura? Passou de 42 para 43m2, com sala maior e pia dentro do banheiro. A cozinha ficou mais funcional. Está todo mundo gostando. O projeto está bem afinado, sem enchimentos, modulação limpa. João Marcos – Nós fazemos com bloco cerâmico aparente. Bloco de concreto não tem estanqueidade. Luis Henrique – Não pode ter contraste estético, fazer com outro material. Reunião seguinte na prefeitura, em 12 de agosto de 1999, quando Usina já leva desenho do primeiro estudo de viabilidade: João Leopoldo (Secretaria de Habitação) – Não podemos oferecer produtos com área muito diferente [o projeto da Usina/Paulo Freire tinha 56m2 de área, 1/3 a mais que o Cingapura]. Buscamos racionalizar. Vai trazer problema pra gente administrar um nicho diferente ali dentro [do Conjunto Inácio Monteiro] João Marcos – A área maior é contrapartida do trabalho agregado pelos mutirantes. Imagine o contrário [trabalhar em mutirão para um apartamento igual ao feito pela construtora]. João Leopoldo – Mas eles vão pagar menos. Fiz um trabalho em 1993 sobre mutirões, é muito difícil comparar custos. Gostei do arranjo do projeto de vocês, mas não dá para aceitar a diferença de área construída. João Marcos – Qual a prestação do Cingapura? João Leopoldo – Não temos ainda, não há um financiamento estruturado. Pedro (Usina) – Qual o custo de um apartamento do Cingapura? Luis Henrique – Não sei. João Leopoldo – É entre 18 e 19 mil reais. O mutirão vai sair sempre mais barato. (...) Nossa questão aqui é a padronização das tipologias. João Marcos – Quer dizer que pode mudar a tipologia desde que a área construída fique próxima? João Leopoldo – A tipologia de vocês está interessante, mas não podemos oferecer produtos diferentes para o mesmo público de renda. Pedro – Tem que garantir diversidade. Não dá para aplicar a massificação do Cingapura sobre o mutirão. João Leopoldo – O Cingapura é projeto de massa. Não dá para fazer tudo diferente como no mutirão. Tem o Tribunal de Contas, tem que dar uma oportunidade igual para toda a nossa clientela. Estou explicando as razões da área construída ter que ser a mesma. João Marcos – A equidade tem que ser do financiamento, é isso que tem que ser igual e não o resultado. Luis Henrique – Se o mutirão de vocês fosse um conjunto isolado, não teria problema. Mas está no meio do nosso. No final da gestão Pitta não conseguimos nenhuma conquista, a não ser a assinatura de um convênio, que depois precisou ser aditado e revisto. Como no convênio havia a descrição do terreno destinado às 100 famílias, decidimos ocupar nosso próprio terreno, como forma de garantir sua posse para a execução do futuro projeto, na futura gestão da recém eleita Marta Suplicy, do PT. Com material comprado com suas economias, entre novembro e dezembro de 2000 as famílias construíram um barracão de madeira, acompanhadas pela Usina, pelo mestre de obras ex-mutirante Ataíde e pelo carpinteiro Lucas, o espaço abrigava uma casa para caseiro e um salão para assembléias. Sob muita chuva e lama, foram executadas aquelas obras que os vizinhos olhavam com desconfiança. As famílias se revezavam e acampavam à noite para garantir que nada fosse roubado ou depredado, ou que a polícia os despejasse. Foi o primeiro exercício, ainda improvisado, de trabalho coletivo e ajuda mútua que vivenciado. No ano seguinte, abria-se a esperança de que a nova gestão do PT iria reviver os anos do governo de Erundina. Em 2001 retomamos a discussão de projeto com a ilusão de que as obras começariam naquele mesmo ano, para seriam finalizadas ainda na gestão Marta, pois tínhamos receio de que o retorno de um governo conservador poderia interromper as obras, como da outra vez. Na discussão de projeto, a Usina já contava com a participação de uma equipe de arquitetos, incluindo João Marcos, um dos fundadores da Usina. Além disso, tinha-se a vantagem de discutir o projeto estando no próprio terreno em que seria construído. A metodologia de projeto consistiu em quatro rodadas de discussão. A primeira estimulava as “memórias do morar”, em que as famílias eram instigadas a lembrar das casas nas quais já moraram, muitas delas no Nordeste (de onde vêm a maioria dos integrantes da Associação), com varandas, quintais, salas e cozinhas amplas, redes de dormir e a tradicional conversa com os vizinhos na soleira da porta. Em São Paulo, a condição de vida era precária, em casas apertadas e insalubres, mudança que só se justifica pela necessidade de vender sua força de trabalho e receber em troca um salário, escasso no Nordeste. Esse exercício procurava tanto fundamentos sociais quanto subjetivos do morar. Era um estímulo aos sentidos e às lembranças de uma situação de morar que não voltaria, mas poderia inspirar e estimular soluções de projeto (como de fato ocorreram, com as praças-pomar, as varandas alargadas de circulação formando espaços de encontro entre vizinhos, as salas-cozinhas integradas permitindo mesas grandes e a conversa entre todos). A segunda reunião, mais objetiva, procurou construir um quadro relacional entre usos e espaços da casa. Como devem ser dispostos? Quais são maiores ou menores? Como devem ser separados ou integrados? Por onde é melhor entrar? Como se usa a cozinha e a área de serviço? Com isso a equipe da Usina elaborava um relato, ao mesmo tempo gráfico e escrito, das qualidades desejadas para os apartamentos e que instruía o trabalho dos arquitetos. Em situações mais polêmicas eram realizadas votações, com pessoas defendendo cada uma das posições a serem ponderadas. Isso já nos conduzia a tipologias diferentes, como de fato chegamos: cinco apartamentos com plantas distintas, incluindo um com três dormitórios, para atender as famílias maiores. Na terceira rodada, a Usina levou cartazes com plantas na escala de 1:10 (1 metro representado em 10 centímetros), em que os apartamentos eram apresentados e modificados. As paredes e o mobiliário eram fixados com fita adesiva e eram reposicionadas conforme a opinião dos presentes. Tratava-se de um instrumento lúdico de projeto, em que o conhecimento do arquiteto era democratizado. Nas discussões, portas e janelas são mudadas de lugar, a disposição de pias e tanques, arranjo da sala etc. Novas rodadas de votações iam configurando as tipologias distintas resultantes. Durante a semana os arquitetos seguiam trabalhando nos projetos, avaliando aspectos de estrutura, modulação, sistema construtivo, implantação. Na quarta e última rodada de projeto discutiu-se a forma dos edifícios, espaços coletivos, centro comunitário e praças. Para tanto a Usina levou uma maquete física em madeira que provocou muita discussão. As famílias consideraram que os prédios estavam muito próximos entre si e que não havia espaço para praças e parquinhos para as crianças, insolação e ventilação adequadas. De fato, havia um problema. O terreno conquistado previa a construção de 100 apartamentos de 42m2 no padrão Cingapura, e estávamos propondo as mesmas 100 unidades, mas com uma área construída 1/3 maior. Chegamos a um impasse: ou reduzíamos o tamanho das unidades ou reduzíamos o número de famílias, ambas hipóteses rechaçadas pela maioria em assembléia. Mais de um mês se passou até a assembléia seguinte, quando a Usina trouxe uma solução (muito debatida no escritório), a princípio olhada com desconfiança pelas famílias. Um dos prédios seria retirado do seu local para dar lugar a uma praça arborizada, com arquibancada, e seus apartamentos seriam “pendurados no ar”, entre os outros prédios, formando pórticos. Para pendurar os prédios e fazer os pórticos nós teríamos que adotar um sistema construtivo diferente do que os blocos estruturais autoportantes. Deveríamos utilizar uma estrutura independente, em concreto ou em aço – o que também facilitaria a flexibilidade das tipologias, por meio de plantas livres, nas quais as vedações não são estruturais. A Usina tinha experiência anterior com estruturas em aço, por isso, não tivemos receio em avaliar as vantagens dessa alternativa em relação ao concreto. As famílias ficaram satisfeitas com a solução, pois garantia mais espaço livre, mais ventilação e insolação, ocupando o espaço aéreo sobre os taludes. Na escolha dos apartamentos pelos moradores, ao final da obra, os tais “apartamentos pendurados” foram os mais concorridos. A opção pela estrutura em aço também envolvia outras questões. A Usina defendia que a escolha do sistema construtivo pré-fabricado, içado, de montagem rápida, era também a chance de conseguirmos terminar nossa obra antes da gestão Marta acabar. Pois se não conseguíssemos, naquele dois anos e meio que restavam até o fim da gestão, poderíamos ficar (como ficamos) amargando anos para terminar a obra. Além disso, o içamento mecânico da estrutura reduziria em muito o transporte de peso braçal dos trabalhos realizados em mutirão. As alvenarias de vedação eram três vezes mais leves do que o bloco estrutural autoportante. Havia ainda um sentido simbólico, de utilizarmos uma tecnologia empregada comumente em obras caras, prédios de escritórios, fábricas e shoppings no Brasil, agora para outra finalidade, a moradia do trabalhador, seguindo outra racionalidade. Era uma declaração de que não havia tecnologias inacessíveis aos trabalhadores auto-organizados – e ao trazê-las do campo do capital para nosso canteiro, elas também mudariam de sentido e forma. O objetivo era garantir a qualidade da moradia popular, a ampliação das áreas coletivas, a redução do esforço braçal e a preservação do corpo do trabalhador, o ganho de tempo para que todos pudessem logo sair da sua condição de inquilinos ou de morar de favor. A opção foi discutida e aprovada em assembleia. Os estudos sucessivos da Usina e depois em parceria com a empresa Pórtico nos levaram a adoção de chapas dobradas soldadas ao invés de perfis laminados, o que permitiu uma estrutura levíssima (com apenas 22 kg de aço por m2 de construção) e econômica (para os parâmetros do aço). As dificuldades geradas por essa opção, no entanto, foram proporcionais ao seu caráter inovador. Como veremos, o poder público não estava disposto a respaudar esse sistema construtivo e os riscos envolvidos, não tinha profissionais em seu corpo técnico aptos a analisar o projeto e a fiscalizar a execução da estrutura e já havia rejeitado outros projetos em estrutura de aço (como o projeto no Belém do arquiteto Minoru Naruto). A falta de apoio do poder público, a morosidade para análise e aprovação do projeto, o encarecimento global da obra com a inclusão de itens e serviços não previstos ou não detalhados a contento, geraram, ao fim, aditamentos de preço e prazo. Ensaios da autogestão
A etapa de discussão de projetos é um momento decisivo no processo de autogestão, pois é quando se juntam os esforços de famílias, lideranças e técnicos para alcançar uma proposta/ideação coletiva. O momento subseqüente de execução passa a ter outro sentido caso a concepção tenha sido compartilhada anteriormente: todos sabem o que fazem e seus porquês. Trata-se de um aspecto fundamental na desalienação do trabalho e no alargamento da luta popular para exercer a capacidade de imaginar seus espaços de vida, suas tecnologias e territórios. Na discussão coletiva de projeto, o debate sempre se dá em torno das qualidades, das condições de uso dos espaços, diferentemente do que faria uma empresa capitalista ou a tecnocracia estatal, que projetam calculando a razão de troca (econômica e política). Ou seja, o momento de projeto é o de desmercantilização do processo, pois instaura ali o fundamento do uso e da qualidade, ao invés da troca e da quantidade. Processos autogestionários que não passam por essa etapa de concepção de seus produtos tornam-se mais frágeis e incompletos. Além disso, como se trata de um projetar para si, coletivamente, pois o produto moradia será auto-consumido pelos projetistas-construtores-moradores, evita-se a dominância do mercado que, mesmo dentro de cooperativas, é poderosa o suficiente para internalizar a lógica da mercadoria. Uma vez consolidado o roteiro/projeto, com a participação efetiva de representantes de todas as famílias associadas, teve início em janeiro de 2002 o processo de discussão do Regulamento de Obras. Foram três dias inteiros de trabalho, em que mutirantes e técnicos, reunidos em grupos de 15 a 20 pessoas, se debruçaram pela primeira vez sobre o como fazer a obra. Era preciso prever situações, e decidir coletivamente como lidar com elas – o que fazer com eventuais atrasos, sabendo o quão distante de tudo e desprovida de linhas de ônibus era aquela região? Haveria algum tipo de supervisão dos grupos de tarefas? O café e almoço seriam coletivos? Seria possível trazer as crianças? A discussão para a criação das regras possibilitou iniciar discussões maiores, que atravessariam a experiência ao longo dos anos, evidenciando e questionando princípios do trabalho no modo de produção capitalista. A apropriação de um regulamento elaborado coletivamente, e a legitimidade de cada um para fazer valer as regras representaram, sem dúvida, um salto no vínculo orgânico dos representantes das famílias associadas ao projeto. O regulamento final, aprovado em assembléia geral, deu origem a uma cartilha preparada pela Usina, que posteriormente serviu como subsídio para a elaboração de regulamentos de obra por outros projetos de mutirão. Paralelamente às atividades desenvolvidas nas assembléias, nesse período contávamos com uma coordenação defasada que, em sua auto-avaliação e na avaliação do Movimento, carecia de formação política e entrosamento, o que foi de certa forma equacionado por meio de atividades específicas. Os encontros de formação, realizados na sede do Movimento Sem Terra Leste 1, foram acompanhados pelas lideranças e coordenados pelos arquitetos e técnicas sociais da Usina, e serviram para fortalecer uma leitura política comum do processo pela coordenação, bem como apontar temas que demandariam aprofundamento ao longo do trabalho: maior participação efetiva das famílias, reuniões abertas, compromisso dos representantes na coordenação, comunicação entre movimento e associação, discussão sobre os rumos do mutirão, discussões mais amplas sobre política. Ao longo de quase nove meses, foram realizadas mais de vinte reuniões envolvendo a coordenação, a assessoria e a Cohab. Eram sobretudo discussões técnicas, com aumento das exigências para aprovação do projeto (em especial da estrutura metálica), mas também com demandas do mutirão para sua adequação: terraplanagem, patamarização, sondagem (estudo geológico), que impulsionaram um processo político, formativo, por um lado, mas também muitas horas de trabalho para os técnicos e de aprendizado, por parte da coordenação, para o diálogo com as famílias cada vez mais impacientes. O andamento das negociações apontava para uma previsão de início das obras apenas para o ano seguinte – o que apertava nosso cronograma de finalizar a obra ainda na gestão Marta. Foram realizadas algumas rodadas de discussões sobre as possibilidades de organização do trabalho, em que surgiram questões relevantes; todos iriam trabalhar, mas como? Desde então, precisávamos acordar o que iríamos privilegiar, se a eficiência nos parâmetros vigentes de produtividade, ou um processo de aprendizado, em que todos e todas teriam a chance de participar das diferentes tarefas. As famílias chegaram a uma divisão em três grandes grupos de revezamento, constituídos por afinidade, pois a primeira etapa de trabalhos não exigiria que a totalidade dos mutirantes estivesse presente. Em cada um dos grandes grupos (Azul, Vermelho e Amarelo) foram destacadas pessoas para os grupos de apoio, que desempenhariam funções complementares à obra, contando como dia de trabalho: Creche, Cozinha e Limpeza. Cada uma dessas equipes teve reuniões específicas para conhecer e estabelecer acordos sobre suas atribuições, criar procedimentos internos de comunicação e de planejamento em diálogo com as demandas da obra. Foram realizadas atividades de formação e preparação para a obra também com a coordenação recém-eleita e técnicos da assessoria. Era necessário aprofundar o conhecimento e apreensão do cronograma físico-financeiro do mutirão, conhecer os procedimentos de obra, os caminhos das requisições, materiais, comprovantes; criar uma metodologia sistemática de avaliação e planejamento em função das medições. Foram discutidas e acordadas as atribuições dos quadros administrativos que viriam a ser contratados (comprador, almoxarife, pagador) e desenvolvidos instrumentos como fichas de controle de compras e de uso de materiais, diário de obras e livro ata. Após o longo período de negociação para aprovação do projeto em estrutura metálica com a Prefeitura, no final do ano de 2002 os mutirantes da Paulo Freire, junto com sua coordenação e assessoria técnica, tomaram uma decisão: iniciar a consolidação do canteiro de obras. A Usina trazia um acúmulo na discussão sobre a utilização das instalações de canteiro de forma perene e, após uma rodada de discussões com os mutirantes sobre as necessidades e programa de uso para aquele espaço, apresentou um projeto que se tornaria o embrião do Centro Comunitário. Foram retomados e reestruturados os grupos de revezamento e os grupos de apoio, eleitos os quadros administrativos, e marcada a data para o início da obra. Esta primeira construção coletiva em alvenaria foi um ensaio do que se tornariam nossas vidas pelos anos seguintes: aprendizado, camaradagem, desentendimentos, conversas, materiais de construção, ferramentas, capacetes, comida, crianças, vestiários, resistência, cansaço e muita lama nas botas. Em 2003, o Plano de Trabalho Social para os períodos de obra e pós-construção passou a ser formulado segundo os parâmetros definidos pelo Grupo de Trabalho sobre Mutirão e Autogestão da Sehab. O Plano foi elaborado com participação de representantes da Usina e da Associação Paulo Freire, sendo suas orientações gerais aprovadas em assembléia do mês de junho de 2003 e o corpo do projeto discutido em reunião com a coordenação. O esboço do projeto teve como base todo o processo de experiência coletiva vivenciada nos últimos 5 anos, sistematizado pela assessoria e coordenação. Além disso, foi aplicado um questionário aberto junto às famílias, de onde foram extraídos os temas de interesse. Montamos um quadro diagnóstico das famílias obtido a partir dos cadastros da Associação e o diagnóstico da região do Conjunto Inácio Monteiro com o Projeto Bairro Legal Cidade Tiradentes, desenvolvido pela Usina para a Prefeitura. O Plano de Trabalho Social previa dois eixos fundamentais e complementares de atuação: acompanhamento da obra e atividades temáticas de formação, programadas a partir de quatro temas geradores - Identidade Social, Família, Cultura e Vida urbana, que seriam desenvolvidos mensalmente, de acordo com o ritmo das obras. 1º Ato No dia 1º de setembro de 2003 teve início oficialmente a construção do Mutirão Paulo Freire, com a entrada do bate estacas. Foram meses de obras a todo vapor, em que tudo era novo e vivido intensamente. Coordenação e assessoria passaram por um processo de afinação e aprendizado mútuo, na compreensão e aperfeiçoamento dos fazeres da obra. Foram realizadas atividades de preparação para prevenção de acidentes e primeiros socorros com representantes dos grupos, e o acompanhamento do dia-a-dia da apontadoria, do almoxarifado e das compras apontavam os elementos a serem trabalhados com as famílias nas assembleias: atrasos, faltas, cuidado com o uso e devolução das ferramentas, uso dos equipamentos de segurança, detalhes de negociação com fornecedores de materiais. Com o aumento do ritmo e complexificação dos trabalhos, o revezamento dos grupos de cores foi suspenso, dando lugar a células menores, os grupos de tarefas. Para debater e encaminhar a reorganização do trabalho em canteiro, os mutirantes levantaram critérios para a formação de grupos equilibrados: garantir a presença de homens e mulheres, distribuir os mais novos e mais velhos, não ter mais de uma pessoa com limitações físicas, não ter mais de um representante da coordenação, não ter mais de uma pessoa de segurança e primeiros socorros, levar em conta quem iria trabalhar mais frequentemente pela família, ter no máximo seis pessoas. Cada grupo, formado por afinidade (respeitados os critérios) escolheu um nome de guerra (Ranca Toco, Fundo de caneca, Engenheiros do Trabalho, Os Mortos, 100 dó, Grupo dos Mortos, Mortos a vingança, Celebridades, Balança mas não Cai, Mesclado pampa, Sem nome, Os poderosos, Esperança, Oculto, Povozinho de Israel e Terceira Idade) e um coordenador ou coordenadora, responsável por receber as orientações específicas das tarefas no início de cada dia. Em alguns momentos, o coletivo formado pelos coordenadores dos grupos de tarefas, somados aos representantes dos grupos de apoio, teve um papel fundamental de coordenação estendida. Ao mesmo tempo, foi se azeitando a dinâmica do rodízio das tarefas, uma apreensão e potencialização das habilidades de cada um na execução dos mais variados trabalhos: transporte de materiais, assentamento de blocos, limpeza do canteiro, dobra e corte de ferro, corte de madeiras, passagem de conduites, concretagem de laje e muitas outras atividades. As equipes de apoio iam também se estabilizando, com planejamentos e rodízios de funções. As refeições coletivas eram ponto alto dos dias de trabalho, e as atividades com as crianças passaram a ser desenvolvidas em espaços do CEU Inácio Monteiro após inaugurado. Nas assembleias, a mesma metodologia foi mantida: oração matinal, apresentação da pauta pela coordenação, exposição de cada um dos temas pelos respectivos responsáveis, abertura à palavra das famílias que quisessem se manifestar ou solicitar explicações. As atividades temáticas de formação eram desenvolvidas à medida que o ritmo das obras permitia. Nesse processo, cabe ressaltar o papel fundamental do protagonismo das mulheres. Rose comenta que Valdir, liderança antiga do movimento, gostava de falar que “as mulheres estão evoluindo muito e tomando a frente”. O fato das mulheres assumirem funções organizativas e políticas permite que a experiência avance. Essa também é uma grande diferença com a obra tradicional da empreiteira e seu canteiro masculino. Esse imaginário se estende inclusive às arquitetas na obra: empreiteiros queriam falar só com arquiteto homem, engenheiro de preferência, e mesmo os mutirantes homens tinham desconfiança de sua capacidade, no início. Durante anos, a administração compartilhada entre associação e assessoria foi predominantemente feminina, com Rose, Cris, Bia, Helô e Jade - de homem só havia o Pedro e o Djalma. Cristiane relata que fornecedores, empreiteiros e até fiscais insistiam perguntando “Quem toma conta da obra?” e se surpreendiam que eram mulheres. Mulheres na administração, na cozinha, no cuidado das crianças, mas também subindo paredes, armando e concretando lajes, montando kits hidráulicos etc. Mas nem tudo eram flores. Desde o início da obra, o fluxo de liberação foi muito instável. Na gestão Marta foram apenas 4 liberações (de set 2003 a dez 2004), e somente 30% da estrutura metálica pode ser concluída. No final da gestão, houve um imenso calote: só 100 mil reais, dos 700 mil que haviam sido medidos foram pagos. A reeleição não veio, e a Associação foi penalizada de diversas formas: interrupção da obra, multas e protestos dos fornecedores, dívidas, demissão dos trabalhadores contratados, assessoria sem receber, materiais perdidos e se degradando pelo tempo parado. A assessoria ficou sem receber também em outros projetos no fim da gestão, e se afundou em dívidas, com os seus integrantes se cotizando para pagar aluguel. Houve de pronto um esmorecimento por parte das famílias associadas, que se refletiria num esgarçamento das relações com o PT, pela perda de qualquer confiança na gestão pública. A não conclusão da obra nos 4 anos da gestão Marta Suplicy foi uma grande derrota política para nós. Pausa dramática A eleição de José Serra (PSDB) para a Prefeitura de São Paulo encerrou vinte anos de alternância e embates entre a nova esquerda (Erundina e Marta) e a velha direita (Jânio, Maluf e Pitta) na cidade de São Paulo, desde o fim da ditadura militar. Os tucanos, que mantinham o governo do Estado de São Paulo por mais de uma década conquistavam finalmente a capital, derrotando Marta. O início da gestão foi marcado por uma série de auditorias e a retomada dos contratos foi lenta. Os mutirões estavam no fim da lista das obras a serem reiniciadas e nenhum mutirão novo foi contratado – a política de habitação por autogestão foi encerrada (a Usina e Leste 1 tiveram engavetados o projeto do Mutirão Quilombo dos Palmares). Os novos gestores da política habitacional passaram a defender o modelo de projetos e obras da Companhia estadual, a CDHU, e mesmo se aventou extinguir a Cohab de São Paulo (como ocorrera noutras cidades) para que a CDHU assumisse a totalidade de provisão habitacional no Estado. Mas a conquista da Prefeitura de São Paulo era apenas o trampolim eleitoral de Serra para a candidatura a governador em 2006. Ele abandona o cargo de prefeito 15 meses após eleito e o entrega a seu vice do PFL (antiga Arena), Gilberto Kassab, um político ligado ao Secovi e aos interesses imobiliários na cidade. Durantes os anos Kassab, reeleito em 2008, o movimento popular e em especial a UMM estiveram pouco ativos em São Paulo, se concentrando na participação em negociações, conselhos e conferências promovidas pelo Governo Lula – mesmo com a baixa efetividade de conquistas. Os mutirões foram sendo levados pela gestão Kassab em “banho-maria”, sem sofrer contestações mais enfáticas do movimento popular. As liberações do mutirão Paulo Freire passaram a acontecer numa periodicidade cada vez mais espaçada, imprimindo um ritmo lento às obras, com desânimo e sofrimento das famílias. A angústia de esperar, como afirma Cristiane, toma conta de todos, enquanto os coordenadores da Associação e técnicos da Usina se esforçam para desatar o emaranhado da burocracia para a liberação de recursos e para os aditamentos finais da obra. Tinha início o momento desencantado da obra e a internalização dos conflitos entre nós, acirrado pelo declarado combate da política de mutirões pelo PSDB/PFL. Foi um período de esgarçamento da base social, com cerca de 30 substituições de famílias, 8 mortes de mutirantes e muita falta de motivação. A obra ficou meses parada em diversas ocasiões, e o canteiro foi alvo de furtos de peças da estrutura metálica, tubulação de cobre, registros hidráulicos, fiação e material elétrico etc. A nova direita kassabista conseguia impor mais uma derrota aos movimentos populares e seus mutirões. Diferentemente da era Maluf, em que o grau de conflito e enfrentamento era elevado, a estratégia do PSDB/PFL foi a de enfraquecer o movimento por meio de desgaste contínuo em uma guerra burocrática de baixa intensidade – no que foram razoavelmente bem sucedidos. 2º Ato Em outubro de 2005 o mutirão recebe os recursos devidos e reinicia os trabalhos, depois de 10 meses de interrupção, sem segurança de continuidade. Com a paralisação, a primeira de muitas, toda a economia de tempo da estrutura metálica ficou comprometida. Começaram os períodos de “vôos de galinha” da obra, pequenos saltos sem decolar, nos quais eram liberados recursos em ritmo insuficiente para abrir frentes de trabalho maiores e acelerar consistentemente a obra. Com a estrutura metálica finalmente concluída, a partir de 2006, a maior parte das frentes de trabalho pôde ser executada ao abrigo do tempo (tanto chuva como sol forte). Formou-se uma proto-cooperativa, o Grupo de Laje, com mutirantes auto-organizados para prestação de serviços durante a semana como trabalhadores remunerados: Roberto, Antonio, Diego... ao todo eram 10. Foi o grupo fora das pequenas empreiteiras contratadas que mais se destacou. Trabalhou por mais de 6 meses junto; fez inovações no processo de montagem das lajes e que repassava aos mutirantes no final da semana; conseguiu uma forma de divisão da remuneração diferente do que faz um empreiteiro; evitou que apenas o coordenador negociasse por eles, procurando formar ao menos uma comissão; chegou a fazer divisões paritárias dos recursos e em caso de um trabalhador com familiar doente, lhe deu um apoio suplementar. Apesar das circunstâncias adversas, o término desta fase teve um impacto positivo sobre o moral das famílias, pois agora se tratava de preencher o “esqueleto” já montado dos prédios. Entre outubro de 2005 e outubro de 2010, quando a obra foi finalizada, foram liberadas 9 parcelas (incluindo os aditivos), cerca de duas por ano, resultando não apenas em ritmo lento mas em mais da metade do período com obras completamente paradas. As medições e aprovações de contas eram sempre detalhadíssimas e a burocracia estatal e suas gerenciadoras terceirizadas faziam de tudo para complicar o processo. Documentos perdidos, devolvidos, glosas injustificadas, novos impostos a serem pagos, mudanças nos procedimentos contábeis etc eram comuns. Toda uma série de “controles” a que nenhuma construtora se submetia, pois nos canteiros de empreiteiras a fiscalização era apenas visual, do executado em obra, e não nota a nota fiscal, como no nosso caso. As negociações dos aditivos constituíram outra novela a parte. Foram inúmeras negociações complexas, pois parte dos recursos solicitados eram justamente decorrentes dos meses de paralisação, nos quais diversos gastos seguiam sendo arcados pela Associação (como a manutenção canteiro e escritório), fora as perdas com material vencido e roubos, demissões e recontratações. A Cohab evidentemente resistia em reconhecer esses gastos, que comprovaria sua responsabilidade no atraso da obra. Apenas no último aditivo conseguimos que a Companhia reparasse minimamente o prejuízo que impôs a obra. Com poucas frentes de trabalho e as unidades habitacionais quase prontas para morar, iniciamos as atividades de discussão e elaboração do regimento interno, compreendendo a necessidade de criação e apropriação pelas famílias que acreditavam, em breve, deixariam de ser mutirantes para tornarem-se moradoras. Foi discutida a importância do regulamento para o convívio das famílias, apontadas regras a serem analisadas e decididas em assembléia. Houve um amplo processo de socialização de experiências de vida em comunidade (em famílias ampliadas, terrenos comuns a duas ou mais casas e prédios), e o levantamento de questões a serem encampadas pelo regulamento: permissão/proibição de animais, conduta das crianças e adolescentes, horários de silêncio, limpeza das áreas comuns, segurança, estacionamento, divisão de contas. Após longa discussão de cada um dos temas, foram elaboradas propostas posteriormente submetidas à aprovação da assembléia. A autogestão também foi foco de atividades formativas. Foram levantados e discutidos os temas: assembléias (suas funções e periodicidade), comissões (eleições e mandatos), representação legal, tesouraria, agendamento de áreas comuns para eventos, prioridades de utilização das áreas comuns e do espaço de convivência, destinação do terreno em comum com a Associação Unidos Venceremos. Dentro de cada um destes temas, surgiram propostas que foram também encaminhadas à assembléia. Esse processo de formação coletiva de um regimento interno e sua implementação se diferencia de um processo habitual de outros conjuntos habitacionais, onde as regras são determinadas por uma administradora de condomínio e o dialogo é substituído por cartas de advertências e cobranças de multas e penalidades. Ainda no ano de 2006, foi aprovado um projeto da assessoria Grão, que apoiava o mutirão vizinho, o Unidos Venceremos, participante do mesmo movimento MST Leste 1, através do edital da Secretaria Municipal de Cultura (Programa VAI). Trazia em suas atividades uma proposta de envolvimento das crianças e adolescentes das duas Associações, o que permitiu um reencontro com a memória das lutas dos dois mutirões, de avaliação do processo decisório ao longo do tempo, e elaboração de significados sobre aquelas experiências. Concomitante às atividades do projeto “Luz, Câmera, Ação Popular”, coordenação e assessoria se empenharam na sensibilização das famílias para a necessidade de organização para o período de mudança, processo que permitiu visualizar questões prioritárias a serem abordadas antes do final da obra: acabamentos internos aos apartamentos, mudança, transporte público, creches, escolas, saúde, segurança, comércio, auto-sustentação (trabalho e renda), alcoolismo e drogas, terceira idade, crianças e adolescentes. Dentro de cada um dos temas surgiram idéias de como viabilizar a melhoria da qualidade de vida das famílias, cujas tentativas de retomada ao longo do período seguinte foram se tornando insustentáveis, diante da crescente angústia com a incerteza sobre a finalização da obra. Em novembro de 2006, famílias mutirantes das associações Paulo Freire e Unidos Venceremos se reuniram com representantes de outros mutirões para realizar uma vigília reivindicando a liberação das verbas do fundo municipal para os projetos em andamento. As famílias estavam cansadas, havia um clima de indignação generalizado por ter que utilizar os meios de manifestação e pressão política às vésperas do que seria, então, a última parcela. No início de 2007, foram definidas as prioridades para este período que corresponderia à última parcela do convênio, as contratações e rodízios necessários para a realização das frentes de trabalho (elétrica, batentes e portas, guarda corpos, proteção passiva contra incêndio, caixa d’água) e do trabalho social (atualização dos cadastros das famílias, discussões coletivas para a pré-escolha dos apartamentos). Durante o primeiro semestre, foram realizadas as alterações necessárias nos cadastros das famílias entrevistadas e apontadas em entrevistas coletivas por grupo de tarefas as escolhas dos apartamentos com base nas tipologias, andares, blocos, de acordo com as necessidades e desejos de cada família, gerando uma planta-planilha que serviria de base para a dinâmica da escolha dos apartamentos. Na metade de 2007, foi enfim realizada a primeira atividade de escolha dos apartamentos pelas famílias que estavam em dia com as contribuições junto à associação (mensalidades e dias trabalhados), gerando uma nova vida no canteiro com o início das obras de acabamento interno das unidades por parte de cada família. Também nessa data, o Grupo de Trabalho de supervisão do trabalho social da Secretaria de Habitação foi dissolvido o que, para nós, assessoria e associação, representou a perda de um espaço que se tornara fundamental para troca de experiências com outras assessorias e mutirões e interlocução com técnicos sociais da Cohab. Durante os anos de 2008 e 2009, assessoria e coordenação mantiveram junto às famílias um revezamento intensivo e as reuniões periódicas de planejamento, estando presentes o tempo todo na obra e nas principalmente, nas instâncias necessárias para além dela. Em alguns momentos, quando a cobrança das famílias se tornou insuportável, formaram-se comissões de mutirantes para comparecer em peso às reuniões com o poder público; foram episódios extremamente formativos e que possibilitaram a compreensão de que o problema (que afetava suas vidas diretamente, a morosidade para liberação de verbas e consequente inconclusão das obras) estava realmente numa esfera política maior. Em 2008 uma equipe de gravação do programa eleitoral do prefeito, candidato à reeleição, veio ao mutirão para coletar depoimentos favoráveis ao candidato. A obra, apesar de tudo, era uma das poucas da gestão na área de habitação social. A Associação havia sido informada previamente que receberia a visita do pessoal de comunicação da Cohab, mas descobriu que não era bem isso, tratava-se de uma equipe de marketing da campanha. As filmagens foram negadas pela Associação e Usina, resultando em retaliação velada por parte do governo. Isso dificultou mais ainda a finalização da obra, rotulada na prefeitura como da “turma do PT”, quando a Associação declarara autonomia em relação aos Partidos e inclusive já havia recusado gravações ao candidato petista. Os embates não ocorriam apenas na liberação de recursos para a obra. A partir de 2009, antes do fim da obra, os recursos para o trabalho social foram definitivamente suspensos. Por ocasião da negociação do segundo aditamento, Rose e Jade foram recebidas pela então recém designada supervisora do trabalho social com desdém e a acusação de que os relatórios não correspondiam ao que estava sendo executado no canteiro junto às famílias. Ela solicitou uma supervisão de sua equipe “em campo”, sem a qual a associação e a assessoria não teriam acesso àquele recurso (investido a fundo perdido, ou seja, não cobrado como parte do financiamento futuro das unidades habitacionais). A supervisão não ocorreu e mesmo assim os recursos foram suspensos. Entre fins de 2009 e a metade de 2010, muitas famílias já haviam procurado a Associação, propondo a mudança para os apartamentos em caráter emergencial, uma vez que o processo de construção do conjunto se estendera por tantos anos, e a situação econômica de muitas delas tornara-se insustentável. Havia possibilidades do ponto de vista da habitabilidade, mas faltavam condições para abrigar de forma definitiva aquelas famílias; o gargalo estava na ligação de esgoto com a rede pública, há anos em negociação com a Sabesp e a empresa terceirizada contratada, que falira. A solução provisória, de fossa conjunta com a Associação Unidos Venceremos mal contemplava a necessidade das famílias caseiras. Quando a questão do fornecimento da água foi solucionada, houve um salto na pressão e na consciência das famílias – por que não deveríamos afinal ocupar o que é nosso? Progressivamente as famílias foram ocupando seus apartamentos, inicialmente de forma voluntarista e depois de modo organizado e coletivo, dividindo a conta de água e luz. Essa situação foi provocada pela liberação lenta dos recursos e o boicote que o mutirão passou a sofrer, sobretudo após a reeleição de Kassab. Oficialmente todos eram declarados “caseiros” da obra, mas já se sabia na Cohab que quase metade dos apartamentos estavam ocupados. Desresponsabilizando-se dos riscos vividos pelas famílias (ainda não havíamos finalizado a entrada e medição individual de energia, as instalações de combate a incêndio etc), o governo colocava em pauta a comercialização das unidades, da qual trataremos mais adiante. O distanciamento em relação aos políticos e à administração municipal se materializou na auto-inauguração da obra pela Associação, Movimento e Usina. A decisão por entregarem simbolicamente “a chave” entre si e não com a presença do prefeito ou qualquer político era o sinal de que, apesar de todas as adversidades enfrentadas, o grupo da Paulo Freire permanecia de cabeça em pé, construindo sua autonomia. A festa foi preparada com semanas de antecedência, com camisetas, cartazes e convites, e divulgada amplamente entre os grupos aliados, inclusive de fora do Brasil. A Cohab, evidentemente sabendo do que ocorria, não se pronunciou e não compareceu. A inauguração contou com diversas barraquinhas de comidas e bebidas, brincadeiras com as crianças, apresentações de música, dança – além das falas políticas dos próprios envolvidos na construção do mutirão. Bandeiras de vários grupos foram penduradas nas varandas dos prédios, incluindo de grupos da Argentina e Uruguai – como nossa inspiradora, a FUCVAM. As famílias ampliadas dos mutirantes, dos técnicos da Usina, além de novos militantes do movimento de moradia percorriam os prédios, entravam nos apartamentos e conferiam o resultado depois de tanta luta. Cristiane comenta que “qualquer um que visita a Paulo Freire comenta que são os melhores prédios do bairro, até o cara da Eletropaulo, que vem fazer a medição dos relógios, disse que são os mais bonitos”. As pessoas que abrem as portas para as visitas que até hoje vão ao mutirão - familiares, amigos, militantes e estudantes de arquitetura - todos recebidos com imenso orgulho de sua “obra” com um café e uma conversa, pois nada ali se entende sem rememorar a longa luta. Sobre os aprendizados dos protagonistas
A construção das moradias foi uma imensa escola, e nesta escola os aprendizados foram múltiplos e nem sempre de rápida e fácil apreensão. Isso porque diversas vezes éramos confrontados com a volubilidade de sentidos e muitas dúvidas sobre o real resultado de nossas ações. O que nos aparecia num primeiro momento como uma vitória, poderia ser descrito também como sinal de derrota. Alguns exemplos: a conquista do terreno e do primeiro contrato de mutirões desde o fim da gestão Erundina, após 6 anos de malufismo, era uma vitória. Mas nem tanto: o terreno conquistado era exíguo, mal localizado e longe dos pólos de emprego; o convênio assinado era precário e tinha valor abaixo do necessário para a construção das moradias. E o que é pior, depois da comemorada eleição de Marta Suplicy, percebemos que o PT já não apostava mais em políticas públicas geridas por movimentos populares, como o mutirão. Mas seguimos em frente: estudamos uma forma de abrigar todas as 100 famílias naquele terreno, em apartamentos maiores que o padrão, com praças e centro comunitário, aparentemente uma vitória. Mas nem tanto: a verticalização em sete andares, a densidade habitacional adotada, a necessidade do uso de estrutura metálica, tornaram a obra cara e despropositada em diversos aspectos. Afinal, colaborávamos com o processo de periferização da classe trabalhadora e estávamos construindo mais um condomínio fechado em meio a um conjunto habitacional em um bairro dormitório. Por fim, a aposta no mutirão como momento fundamental da autogestão, como campo de aprendizado e desalienação, foi se tornando um martírio, depois de sete anos de uma obra marcada por paralisações. Com isso, o que era uma prática conscientizadora e empoderadora tornava-se uma dolorosa autoexploração. Afinal, o mutirão deixou de ser uma opção e resultou em obrigação para “fechar a conta” do orçamento da obra, o que também nos levou, premidos pela falta de recursos, a aceitar formas de precarização generalizada dos trabalhadores contratados, inclusive da assessoria técnica. Assim, ocorrem inúmeras inversões de sentido, em que nos vemos por vezes seguros, por vezes incapazes de compreender o que se passava, num processo tortuoso ao mesmo tempo de adaptação/resignação e de transformação/insubordinação. Neste caso, cabe perguntar: em que medida os agentes envolvidos criaram uma ilusão sobre o potencial transformador do mutirão autogerido? Ou, mesmo diante de tantas adversidades, como puderam vislumbrar um aprendizado emancipador dos sujeitos envolvidos? A conquista material da moradia veio, ao final, mas a que custo social e político? O breve relato que segue procura descrever os aprendizados dos protagonistas desse teatro, entre o épico e o absurdo. Se é possível uma narrativa que não seja tão permeada de dúvidas, podemos dizer que a primeira etapa num processo de formação da consciência coletiva do grupo de famílias da Paulo Freire se deu com os diversos atos públicos que culminaram na assinatura do convênio e a ocupação do terreno conquistado. Ocupação que resultou no ato de construção do primeiro espaço comunitário, ainda em madeira, e da casa do caseiro. A tomada de posse de um pedaço da cidade, que aqueles militantes da causa da moradia reivindicaram para si, como seu direito, foi um sinal inequívoco de aprendizado político – movido pela necessidade concreta. O estágio seguinte na elevação da consciência se deu com a elaboração coletiva do projeto. Como mencionamos, as decisões de arquitetura não foram resultado de uma livre decisão dos produtores; estavam condicionadas pelo tamanho do terreno e do financiamento. Contudo, a diversidade de tipologias, a presença de espaços coletivos, o tamanho das unidades e a qualidade dos materiais e das tecnologias empregadas eram vistos como novo aprendizado na construção do poder popular na sua capacidade de dirigir, ao menos parcialmente, o seu destino. A concepção do produto esteve sempre associada à concepção do processo de obra. Nesse sentido, um duplo trabalho intelectual, de projeto e gestão, que fortalecia a capacidade dos trabalhadores em discutir meios e fins de sua ação conjunta. O projeto evidenciou que técnica e política são pares indissociáveis na escolha das possibilidades colocadas em discussão (ou mesmo na percepção das impossibilidades, ou das alternativas que estavam negadas). Com isso, os técnicos passaram a se enxergar também como trabalhadores e aliados políticos, ao direcionarem a técnica como forma de ação política. O aprendizado também ocorre para os jovens profissionais da Usina e não apenas para as famílias do movimento. Pensar o produto moradia como processo e obra possibilitou avançar a um nível mais elaborado de consciência no momento da autogestão da produção. Houve um reconhecimento do poder do trabalhador coletivo unificado por sua vontade e autoconsciência, e não pela ação heterônoma do capital. Isso possibilitou o reconhecimento da condição de mutirante como grupo organizado por autogestão no processo de produção das moradias. Esse foi o momento da execução de uma obra que se propôs organizar através dos princípios autogestionários desde sua origem, ao se testar princípios, práticas e concepções num processo contraditório e dinâmico representado por uma obra complexa e desafiadora no âmbito popular. Neste momento e em todo o processo a alienação do trabalho era enfrentada, ao permitir aos participantes o máximo de controle do processo e do produto do trabalho por suas mãos e consciências. O conjunto das pessoas estava a par de cada detalhe da obra, do controle financeiro, das compras, dos estoques e ferramentas etc., através das assembléias deliberativas. A construção da obra inseriu a dimensão concreta do processo de trabalho, e nele foi possível questionar e perceber a divisão técnica, sexual e social do trabalho. Com a proposta de mutirão autogerido, os participantes tinham o compromisso de contribuir com uma parcela da construção, e isto se apresentava sob três aspectos: 1) baratear o custo de produção da moradia; 2) reverter em qualidade do ambiente habitado o que seria o lucro de uma empreiteira; e 3) participar da produção como experiência pedagógica, de socialização de saberes da construção civil e das potencialidades do trabalho associado. É assim que “o operário faz a obra e a obra faz o operário”, como diz Vinicius de Morais no poema Operário em construção. No movimento de desalienação do trabalho, ao permitir o controle de uma parte do processo produtivo pelos produtores, os mutirantes se depararam com a determinação fundamental das relações de produção do modo de produção capitalista. Da exceção à regra, o ritmo de produção no mutirão Paulo Freire foi sempre comparado às demais experiências, inclusive as de empreiteiras convencionais que detêm o monopólio de recursos e de tecnologia para a extração de mais-valia (trabalho excedente) dos trabalhadores da construção civil, ao se medir por uma certa “eficiência” nos prazos e entregas do produto. Diferentemente de uma obra realizada por empreiteira, o mutirão estabeleceu relações de produção definidas pelo grupo como um todo. O funcionamento da obra esteve sempre apoiado pelas assembléias, comissões e representantes eleitos, e não sob o comando de patrões e capatazes. Da regra à exceção, o processo de produção das moradias permitiu a construção de uma capacidade crítica de seus participantes, ao mesmo tempo em que revelou os limites da experiência. Percebemos os entraves a serem superados, e as dificuldades e os desafios foram sempre compartilhados conjuntamente. O grupo realizou um esforço coletivo máximo com o objetivo da construção de um objeto (e lugar) que lhes pertencerá: a moradia, na qual, por terem participado do processo, tende a prevalecer para seus moradores o seu valor de uso em detrimento do valor de troca, que move a empresa capitalista. Isso produz inversões fundamentais no que se entende como trabalho e apropriação do produto deste trabalho. O modo de produção e apropriação definem modos de socialização e participação. Neste emaranhado de relações sociais, o processo produtivo da obra caminhou junto ao processo educativo, de aprendizagem e socialização. As pessoas que participaram, tanto da assessoria como do mutirão, aprenderam a ser enquanto pessoas e coletividade; aprenderam a conviver, a tomar decisões conjuntas e a manifestar discordâncias sobre determinados temas; aprenderam a produzir, a manejar ferramentas, a preparar cimento etc.; e aprenderam a conhecer, a negociar, a pesquisar e a buscar saídas para as dificuldades. A alienação [15] do processo produtivo aqui foi provocada pelo movimento de desalienação em determinados momentos, mas não no conjunto do processo de trabalho – uma vez que o canteiro de obras é apenas o momento final de uma longa cadeia produtiva da construção civil e na qual pouco pudemos interferir. Mas o movimento popular provocou e acirrou a contradição entre alienação e desalienação do trabalho, numa ação de negação das formas dominantes de organização da produção e do trabalho. Esta dinâmica possibilitou a transformação dos agentes que participaram diretamente da obra na Paulo Freire. A alienação, portanto, esteve e está associada aos fenômenos de estranhamento e fetichismo da mercadoria [16], numa tríade indissociável na lógica do capital. Esse processo de desalienação e crescimento da consciência do sujeito coletivo, como classe e como agente produtor da cidade, enfrentou diversas contingências externas e esbarrou também em limites internos da autogestão. Das primeiras, a heteronomia antagonista aos protagonistas, e que vestiu diversas máscaras para conosco contracenar, de que trataremos no próximo tópico. Aqui mencionamos o que denominamos de “limites internos” à ação coletiva, e que nem sempre soubemos contornar – lembrando que uma parcela destes limites, inevitavelmente, faz parte do choque entre autonomia e heteronomia e da internalização dos conflitos postos pelo contexto no qual nos inseríamos. Nem por isso deixamos de fazer a autocrítica, a negação que segue, necessária ao crescimento do processo formativo de consciência dos protagonistas (movimento popular, associação de mutirão e assessoria técnica). O Movimento Popular, no caso, a UMM, encontrou limites para seu crescimento – diversos deles resultado do descenso geral das organizações populares nos anos 2000, uma derrota paradoxal em plena vitória eleitoral da esquerda, com a condução de Lula à presidência. Parece não ter havido disposição política ou fôlego por parte do Movimento para continuar realizando ocupações de terras e imóveis no mesmo ritmo do final dos anos 1990; não se conseguiu um sistema de financiamento, em volume correspondente aos desafios, para apoio às lideranças, nacionalização do movimento e constituição de infraestrutura; com isso, não pôde montar escolas de formação e, de fato, formar quadros políticos e técnicos em número e qualidade necessários. Não se conseguiu a continuidade das políticas públicas de autogestão existentes ou garantir que as novas tivessem regulamentação adequada para operação e fundos públicos à altura; por fim, não se obteve maior sucesso em tornar pública e congregar novos apoios à luta por Reforma Urbana. Comparativamente, os que estavam na luta por Reforma Agrária obtiveram conquistas em todos esses aspectos, o que deixava o movimento urbano muito atrás dos camponeses. Além disso, passado o ciclo institucional/legislativo do Estatuto da Cidade, o Movimento não construiu um programa e uma teoria consistentes para a transformação das cidades – nesse sentido, passou a ser guiado pelas conjunturas imediatas sem um projeto político mais amplo. Houve um distanciamento entre intelectuais universitários e o movimento popular, ao mesmo tempo em que este não conseguia formar seus próprios intelectuais orgânicos – com raras exceções. Com a falta de quadros, havia dificuldade em garantir o acompanhamento cotidiano das Associações como a Paulo Freire, então o processo de aprendizado político e de autogestão deixava de ser cumulativo. De outro lado, a ausência de espaços de formação próprios e a falta de novas lideranças diminuiu a capacidade do Movimento de construir sua autonomia, política e financeira, em relação a mandatos de parlamentares e administrações públicas. Outra série de limites foi enfrentada pela Associação Paulo Freire. Desavenças internas, personalismo de algumas lideranças, desconfiança das famílias em relação à tomada de algumas decisões, prestações de contas dificultadas pelas paralisações, etc. Houve uma rotinização das Assembléias que, apesar de manterem a assiduidade mensal, deixavam de ser um espaço estimulante e formativo. Isso produziu um descompasso de formação política interna à Associação, entre as lideranças e a base, de modo que as coordenações eleitas acabavam não funcionando como coletivos ativos e representativos. Com as paralisações sucessivas no período Serra/Kassab, houve um esgarçamento das relações sociais, provocando descontinuidades de organização e perda da capacidade de mobilização. Todas as ações coletivas pareciam penosas, sofridas, e as pessoas enfrentavam esses momentos como uma provação – muitas vezes abençoada pela reza que antecedia as reuniões e dias de trabalho. A Associação, nesse sentido, não conseguiu democratizar a leitura política dos impasses que vivíamos e do enfrentamento com o Estado. O último desafio foi a transformação da Associação de construção em Condomínio de moradores. Nessa metamorfose, ocorreu uma mudança qualitativa, em que pessoas que influenciavam o grupo durante a obra perderam poder (ou saíram, como a Usina). Tal como o Movimento, a Associação não conseguiu formar gente mais nova para dar continuidade à autogestão local. Diversos conflitos novos emergiram no pós-ocupação, e a convivência cooperativa deu lugar à disputa nem sempre amigável por espaço físico e de mando no condomínio. A assessoria técnica, a Usina, também enfrentou limites – que não deixam de ser resultado da precariedade das políticas públicas das quais participa e de seu baixo e instável padrão de remuneração. Enquanto as famílias acreditavam que a Assessoria era um porto seguro de conhecimento e prática, havia inseguranças da nova geração em quase tudo com que se deparava: na forma de se relacionar com os mutirantes e trabalhadores, no saber técnico que a universidade proporcionara de modo frágil e fragmentado, na falta de prática de canteiro, nas mesas de negociação com o poder público e mesmo na negociação de contratos com os fornecedores. Como lembra Cristiane, “nós acreditávamos que a Assessoria sabia tudo, eram todos formados na melhor Universidade do Brasil, e depois vimos que não era bem assim”. Deixando de lado o figurino de heróis, os assessores viveram vários momentos de testes, desespero e provações. O sentido e utilidade de sua presença precisava ser renovado a cada nova etapa da obra, nas atividades de formação ou a cada rodada de negociações por uma nova liberação de recursos. Ocorreram erros evitáveis (e outros, inevitáveis) no projeto, na condução da obra e no trabalho social. Para todos, era a maior obra que já realizaram, com uma tecnologia que não dominavam, sendo que os arquitetos mais experientes da Usina não puderam supervisionar como necessário – e mesmo eles, diante dos fatos expostos, reconhecem que também enfrentariam dificuldades. O caráter artesanal da construção civil, a imprevisibilidade de diversas de suas variáveis, a interrupção das liberações, tornaram o mutirão um malabarismo em que os assessores por vezes se viam perdidos, mesmo fazendo o melhor que podiam. Nos momentos de pagamento da Assessoria, outra situação tensa (quando a militância se confundia com o trabalho) - era sempre necessário explicar como a Usina funcionava, quais eram os nossos gastos, como dividíamos o dinheiro, quantos meses estávamos sem receber. A coordenação começou a perceber o quanto a Assessoria também sofria em todo o processo e estava precarizada, mas talvez parte da assembléia, até hoje, não tenha entendido por que essas pessoas entraram nessa história – talvez ainda pensem ser um serviço como qualquer outro, para ganhar dinheiro e pagar as contas. Por vezes os protagonistas (movimento, associação, assessores) se desencontraram. Os principais problemas foram basicamente de perda de confiança, o que levou à quebra da unidade em alguns momentos. O grau de cobrança, sobretudo em relação à assessoria, jogava por terra a solidariedade e a aliança entre os agentes. Foram diversos os momentos em que a horizontalidade foi substituida por posições hierárquicas, remetendo a relações de patrões e empregados. Seja quando a assessoria era “posta no seu lugar”, como equipe contratada, seja quando o assessor técnico circulava pela obra, dando instruções de trabalho, e acabava sendo identificado como patrão pelos mutirantes. Quando surgia um erro em obra, uma compra errada, um desperdício de material ou algo mal executado, era uma corrida para achar culpados. Pedro lembra que “numa obra autogerida tudo fica evidente para todos, o erro é para todos verem, não é para esconder. Nas obras convencionais isso é escondido. Os proprietários ou compradores não sabem dos erros, trabalhadores e engenheiros escondem”. Na autogestão o erro fica mais evidente porque todos têm o direito de saber o que ocorreu – a questão é como tratar o erro, como torná-lo um aprendizado. A culpabilização de um agente, em geral a assessoria técnica, colaborou com uma das táticas do poder público na defesa da provisão capitalista da moradia: desmoralizar os grupos técnicos dos movimentos populares, mostrando-os como incapazes de substituir a gestão empresarial de uma obra. O limite da nossa autogestão estava dado pela falta de governabilidade sobre as liberações e volume de recursos, entre outros fatores externos. Boa parte das coisas mais incríveis, radicais – e felizes – que vivemos esteve concentrada nos períodos de fluxo contínuo de recursos, pois ao mesmo tempo nos permitia juntar a todos e trabalhar juntos, com o corpo e a cabeça. Depois do término da obra temos os corpos juntos, mas não atividades coletivas (nem mutirão, nem reflexão). Será possível que a única razão que nos unia era um fim material e concreto (a moradia)? Isso não se ampliou com o tempo? Essa experiência, por sua vez, gerou ao longo do tempo a percepção do outro como um igual, trilhando os mesmos caminhos e “comendo do mesmo sal”. Aos poucos, veio a reflexão de que este outro só poderia representar de fato um igual à medida que nele operasse o autoconvencimento da pertinência da luta, nada mais seria capaz de garantir sua participação e seu engajamento. Era preciso criar condições para que essa opção fosse de fato uma opção. Estávamos trabalhando juntos por um objetivo comum, de não esperar o fim do capitalismo para experimentar viver de outra forma, outras relações de decisão, de convivência e de trabalho, diferentes daquilo que o sistema capitalista vinha impondo durante nossas vidas. Esse foi o estágio de consciência, mal ou bem, a que chegamos ao final da experiência. Sobre os antagonistas e suas máscaras Os antagonistas da história do mutirão Paulo Freire assumiram diversas máscaras e representaram as forças heterônomas que constrangiam a liberdade de ação dos protagonistas. Ora eram personagens concretos, figuras de carne e osso, ora eram difusos e pairavam sobre nós, como as forças do mercado ou a burocracia estatal. No quadro geral de restrições vivíamos o aniquilamento das políticas públicas de habitação autogestionárias, em vários níveis. O governo do Estado já havia encerrado a política de mutirões, na gestão municipal do PT não se priorizou a política habitacional, e depois com PSDB-PFL a política de autogestão foi extinta e as obras em já iniciadas foram mantidas em ritmo lento, apenas por exigência do tribunal de contas. Os antagonistas impediram que os protagonistas estivessem seguros sobre suas conquistas. Como já dissemos, as inversões de sentido foram constantes e os “heróis” da história nem sempre estavam certos de suas vitórias. Desse modo, a narrativa e linear estava impedida, as fronteiras entre o certo e o errado eram borradas e o entendimento maniqueísta do embate tinha pouca serventia – apesar de termos claro que havia dois ou mais lados em disputa. Os protagonistas estavam longe de poder comandar suas decisões com autonomia. E mesmo quando ela existia, era parcial e relativa. O embate não era apenas com o Estado e seus interesses, mas também nas engrenagens de acumulação da produção do espaço em que estávamos metidos. Nosso canteiro de obras autogerido tinha uma posição limitada na cadeia produtiva da construção civil. Ele era apenas o momento de montagem de diversos materiais que comprávamos e que não eram feitos por empresas autogestionárias e sim por grandes grupos de capital. No próprio canteiro tivemos um modo de produção híbrido e complexo (com uma diversidade de relações de produção e de envolvimento dos trabalhadores). E para além dele, contextos bastante heterônomos, quase sempre fora de nosso controle. A cadeia produtiva do mutirão, para trás do momento do canteiro, era formada por grandes empresas extrativistas de minérios e madeira, indústria do aço e do cimento, empresas de blocos, fornecedores de matérias primas diversas representando outros segmentos e agentes na economia política da construção civil. Apenas os hidrômetros pudemos comprar de uma cooperativa, todos os demais materiais vieram de grandes ou pequenas empresas capitalistas – e diversos deles condicionados a flutuações dos preços mundiais de commodities como aço e cobre. Ainda na cadeia produtiva, os moradores decoram e mobíliam seus apartamentos com móveis e eletrodomésticos produzidos por grandes empresas, algumas delas transnacionais, ou empresas pequenas pulverizadas e articuladas por revendedores, e ao fim, acessam esses bens por meio de fornecedores de crediários. Do padrão de gosto ao padrão de endividamento, tudo está fora do nosso controle. Como nosso momento produtivo e de liberdade, mesmo que restrita, é o da montagem em canteiro, talvez o sobrevalorizemos e se observamos toda a cadeia produtiva, talvez não faça tanta diferença a nossa “alternativa”. Isso demonstra como o processo de trabalho se tornou processo de valorização do capital, e a obra da Paulo Freire não esteve dissociada deste processo. Se substituímos o antagonista “empreiteira capitalista” pelo corpo produtivo autogestionário, todos os demais agentes do capital que circunda a produção e consumo da moradia seguiram ativos no nosso processo “emancipador” – que mais uma vez, dependendo do viés do olhar, passamos de antissistêmicos a engrenagem do sistema. Outro agente heterônomo com incidência contraproducente foi a burocracia do Estado e seu sistema de superfiscalização da autogestão: fiscalização desproporcional e diferenciada da que é dedicada às empresas capitalistas contratadas pelo mesmo Estado. O fiscal de obra, lá na ponta do processo, não era uma figura maligna, ao contrário, muitas vezes entendia o que se passava, mostrava-se compreensivo e até atrapalhado com tanta papelada, sofrendo com as exigências da burocracia. A desumanização do processo e sua abstração nas tramas administrativas ocorria na medida em que relatórios de obra, trabalho social e prestação de contas subiam para os níveis superiores da gestão estatal. A resposta que recebíamos desses níveis impessoais do Estado beiravam muitas vezes o absurdo. Contudo, as interrupções das liberações, com todas as penalizações que isso implica, não são fruto apenas de um corpo gerencial desproporcionado. Foram decisões políticas, tomadas por agentes no interior do Estado que tinham como objetivo combater as iniciativas autogestionárias dos movimentos populares e que poderiam desmentir a farsa da política pública convencional atrelada a interesses capitalistas e eleitorais. As consequências de desequilíbrio financeiro e de cronograma da obra são imensas e promovem o desgaste na organização popular. Esse o ponto de mutação da experiência autogestionária que faz inverter seu sinal como prática de heterogestão: a dependência da liberação de fundos pela máquina do Estado, segundo regras que são impostas por ele – dada a impossibilidade dos trabalhadores resolverem com recursos próprios seu problema de moradia. Situação que não deixa de ser ambígua, pois os sistemas mais avançados de proteção social constituem uma rede de proteção distinta dos salários dos trabalhadores e os amparam nas situações adversas. Imaginar que teríamos mais autonomia se dependêssemos apenas da cotização entre os trabalhadores seria, ao mesmo tempo, dispensar a partição da riqueza social por meio da apropriação de fundos geridos pelo Estado, e que nos são de direito. As instâncias de participação e de democratização do Estado, como o Conselho Municipal de Habitação, foram sendo esvaziadas. O Conselho deveria responder por toda a política habitacional, debatendo prioridades, diretrizes, avaliando sua implementação, participando da realização de planos e diagnósticos. Contudo, a gestão Kassab conseguiu restringir o papel do Conselho à administração de recursos do Fundo Municipal de Habitação, que foi sendo igualmente esvaziado. No ano de 2011, o Fundo contava com apenas 53 milhões de reais de um orçamento municipal de habitação que já ultrapassava 1 bilhão de reais – ou seja, cerca de 5% do total. Recursos advindos dos governos federal e estadual, Banco Mundial, BID e outros agentes externos não passavam pelo Fundo e não eram avaliados pelo Conselho. Por fim, na eleição de representantes em 2009, houve uma série de irregularidades, transporte de eleitores, votos com cédulas de outros, que foram contestados pelos movimentos. Mesmo assim o Conselho foi empossado, com maioria governista. Na eleição de 2011 as confusões continuaram, e o Ministério Público suspendeu o processo eleitoral. O resultado é que em 2012 não há mais Conselho de Habitação ativo na cidade – extinguindo o último espaço de participação interno à política habitacional no município. Por fim, o processo de comercialização das unidades habitacionais foi o último embate travado entre o Movimento popular e a administração pública. No caso dos mutirões Paulo Freire e Unidos Venceremos, já era sabido que não haveria título de propriedade, uma vez que toda a área do Conjunto Inácio Monteiro ainda não fora regularizada do ponto de vista fundiário e cartorial. O governo oferecia títulos precários, como um termo de permissão de uso, em troca de iniciar a cobrança das prestações. A comercialização é um momento decisivo das negociações, quando se define o padrão de subsídio e o valor que as famílias vão pagar – passando da condição de mutirantes para a de mutuários. Ou seja, é quando aflora a contradição entre realização de um direito social e a cobrança pela “venda” da mercadoria-moradia – na forma do financiamento habitacional. É nessa ocasião que se definem pesos e medidas entre a justiça social, a distribuição de renda e a taxação dos mais pobres pelos “benefícios” que recebem do Estado. Os mutirões iniciados na gestão de Luiza Erundina, que não pagavam prestações até aquela data, receberam uma resolução específica do Conselho de Habitação. Para o caso dos novos mutirões, sucederam-se três resoluções (10, 37 a 51) até se definir o enquadramento final. A proposta aprovada no Conselho era de que a correção seria em função do salário mínimo, com prestação igual para todos, em torno de 110 reais, com juros zero. Isso correspondia a 25 mil reais por unidade, que havia custado 65 mil reais, no caso da Paulo Freire, resultando em um subsídio de cerca de 60% do custo da unidade – o que não era uma má negociação. Mesmo assim, em obras feitas por construtoras, famílias pagam ainda menos – no Cingapura vizinho ao mutirão, a prestação era, em 2010, de menos de cem reais. Pagar mais do que numa obra de construtora, mesmo tendo trabalhado em mutirão e sofrido por anos aguardando o fim da obra, era mais uma forma de desmoralizar os mutirões e fazer com que a população de baixa renda ainda vinculada aos movimentos de moradia aceitassem obras feitas por construtoras – afinal, “mais rápidas e mais baratas”, mesmo que o apartamento seja pior e menor. Os antagonistas e suas diversas máscaras não escondem, contudo, a sua verdadeira face: a de um sistema capitalista produtor de desigualdades e injustiças e a de um Estado, mesmo que não monolítico, determinado predominantemente em sua ação por interesses dos poderosos, no mercado de trocas políticas, simbólicas e econômicas. Diante dessas forças titânicas, o pequeno agrupamento do mutirão Paulo Freire e seus aliados pode pouco, mas ao fim, conseguiu chegar à conclusão da obra e promover a formação de diversas pessoas, que despertaram para a consciência política e para a ação transformadora – e atuam agora em diversas frentes de luta (direitos da criança e adolescente, cooperativismo e economia solidária, movimento de moradia, igreja progressista, política para os idosos, gestão local da educação, universidades, movimento dos trabalhadores rurais sem terra etc). Fechando as cortinas A experiência do mutirão Paulo Freire está inserida no momento histórico considerado de derrota do ciclo de lutas por Reforma Urbana [17]. Para entender as dimensões dessa derrota é preciso ampliar a percepção para além das fronteiras da obra: compreender o que está em jogo na situação do capitalismo global, e as possibilidades e impossibilidades da luta popular de fazer frente a suas contradições. Neste sentido, em que medida os agentes envolvidos (movimento, assessoria e mutirantes) apostavam neste projeto? Quais os graus de inserção e compromisso com a autogestão? Quais os avanços políticos e relacionais desta experiência? Ampliar a capacidade crítica e autocrítica apareceu como necessidade diante das dificuldades em compartilhar essa discussão entre mutirantes, coordenadores, movimento e a Usina. A participação popular em processos produtivos com princípios autogestionários demonstrou historicamente um nível importante de apropriação pelos agentes. A apropriação [18] se apresenta como uma dimensão que se compreende integralmente apenas no interior do processo de produção. De partida, o ingresso de participantes em lutas sociais esteve associado ao conjunto de necessidades, e no caso da Associação Paulo Freire, a uma necessidade imediata: a situação da moradia. A necessidade de moradia das classes populares ocultou por um período da consciência social destas pessoas uma dimensão histórica importante: as trajetórias pessoais estão inseridas em processos sociais que precisam ser interpretados coletivamente. Muitas destas famílias e de suas gerações precedentes são oriundas de processos migratórios intensificados a partir dos anos 1950 com a industrialização no país. Com os desdobramentos da reestruturação produtiva no período neoliberal ao longo dos anos 1990, foi possível perceber os nexos que permitem visualizar as condicionantes sociais que levaram estas famílias a lutar por moradia nas periferias das cidades. As gerações que deixaram sua terra natal para tentar a vida nas grandes cidades da região sudeste brasileira, em sua maioria oriundos do Nordeste, se depararam com a vida na metrópole que, por um lado, é um lugar em que tendem a prevalecer a impessoalidade e o individualismo, a propriedade privada e a mercantilização das necessidades humanas, tal como a moradia, e por outro, o lugar do encontro, da vida social, da simultaneidade e da concentração espacial e territorial das pessoas. Por isso, a casa própria passou a ser um sonho para a maioria dos brasileiros, ao se tornar inacessível por sua condição de mercadoria complexa e bem de consumo durável, no momento em que grande parcela da população foi privada e espoliada dos direitos sociais de uma civilização moderna. Nestes termos, a formação social brasileira se configurou mediante à industrialização dependente e à urbanização periférica, com generalização da autoconstrução das casas por trabalhadores de baixa renda. Ao longo de décadas, a autoconstrução das periferias constituindo uma cidade informal ou “oculta” aos olhos do Estado e dos urbanistas, nos termos de Maricato [19], envolveu a cidade formal, do mercado e dos planos, como fenômeno consentido, pois era funcional para a reprodução social das desigualdades no Brasil. Em ambos os casos (cidade formal e cidade informal) prevaleceu a lógica da propriedade privada da terra e do imóvel, que mergulhou a população da paulicéia desvairada [20] numa dinâmica que obrigava o pagamento da renda da terra ao proprietário, na maioria dos casos resultado de apropriação indevida e grilagens [21], e por isso limitou o acesso a quem pudesse pagar. Como efeito, os trabalhadores de baixa renda, superexplorados nas fábricas, na informalidade e em trabalhos precarizados, não dispunham de condições socioeconômicas para pagar os custos de sua reprodução social, numa sociedade em formação que configurava os conflitos entre situações de classes e de estratificação social, o que levou aos efeitos de desigualdades na configuração espacial da cidade produzida. Como cantou Zé Geraldo em Cidadão: “(...) Essa dor doeu mais forte, porque que eu deixei o norte, eu me pus a me dizer. Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava tinha direito a comer (...)”. Parece que muitos retirantes e migrantes que foram para as regiões sul e sudeste e do campo para a cidade algum dia fazeram este questionamento. Essa realidade imposta às suas vidas demonstrara os elementos e contradições da formação social brasileira que não resolveu as necessidades básicas do conjunto da população, ao apontar para uma forma de cidade e cidadania incompleta [22]. Desde a casa grande e a senzala [23], um certo espelhamento entre ordem espacial e ordem estamental altamente desigual e perversa se configurou com esta “brasilidade”. Da senzala chegou-se aos cortiços e as favelas, e o sinhô ainda está presente nas relações promíscuas entre patrões e empregados, àquela cordialidade violenta da qual trataram Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, expressos no trabalho doméstico sem direitos trabalhistas em residências de classes médias e abastadas por este Brasil afora. Isso revelou um tipo de estrutura social formada pela herança colonial [24], ao mesmo tempo em que autoritária e com fortes traços de estratificação social [25]. Ao se encontrarem no processo de luta por moradia, esses trabalhadores perceberam que outras pessoas viviam os mesmos dilemas e problemas na vida. Reconheceram-se com um problema comum: a questão da moradia passou a ser um problema social e não individual – “resolvível” pela autoconstrução, com esforço e poupança próprias. Lutar pelo direito à moradia remetia, para os recém ingressantes no movimento, lutar por um direito humano inalienável e coletivo, que no caso brasileiro só se conquista por meio da luta social, do enfrentamento da propriedade privada, da disputa pelos fundos públicos e pelo associativismo e ajuda mútua. Como herdeira do ciclo de lutas 1980-2000, a Associação Paulo Freire reuniu pessoas que reivindicavam a necessidade da moradia. Essas pessoas, que começaram a participar de reuniões dos grupos de origem na UMM, perceberam um primeiro aprendizado: se reconhecer coletivamente nas reuniões e nas ações do movimento. As ações de ocupação, manifestações públicas de rua, reuniões em gabinetes de vereador, secretário da habitação e até prefeitura, entre outras, permitiram a superação das barreiras iniciais (físicas e ideológicas) que isolavam-nas apenas na dimensão de indivíduos atomizados. A participação passou a ser política, e a ação política contribuiu para politizar os participantes no processo. Essa percepção coletiva se manifestou desde a iniciativa mais simples e imediata, que é o de pensar juntos as ações, ao de organizá-las e de assumir responsabilidades coletivas cada vez mais mediadas e complexas. Desta inserção e participação, novas lideranças emergem e em sua maioria representada pelas mulheres, que demonstraram um movimento de superação da opressão doméstica e de gênero, aspecto enraizado e muito forte entre as classes populares. Nesta construção conjunta há uma mudança qualitativa: passagem do momento da reivindicação para o da cooperação consciente. Como enfatizou Rose, uma das coordenadoras do processo, ao dizer em entrevista “eu sou o movimento”, e expressar uma identidade que se construiu coletivamente. E não é por acaso que as mulheres são maioria entre os participantes no mutirão, na organização, nos grupos de trabalho e na coordenação, já que assumem para si os processos sociais da obra. Da parte das assessorias técnicas e dos universitários, estes agentes passaram a se definir como profissionais militantes com engajamento nas questões sociais. Muitos ingressaram no movimento estudantil, nas Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – ITCP’s, nas assessorias técnicas, e etc. Posteriormente, sua identidade passou a ser “Eu sou o assessor técnico do movimento”, ao superar a condição de universitário extensionista para a de profissional engajado que atua com o movimento popular – e, nesse sentido, faz uma escolha de classe. Essas dimensões, segundo os entrevistados, aparecem desde as origens do processo participativo no projeto. Esse movimento histórico-social determinado expressou a disputa política entre projetos distintos de sociedade, sob as dimensões da moradia e do espaço urbano nas cidades. Como uma experiência residual, em proporção ao conjunto da produção social de habitação popular, a Associação Paulo Freire, apesar de todas as ingerências que sofreu, mais parece uma ilha de autonomia relativa em meio ao oceano de heterogestão como constructus e modus operandis predominante na periferia da cidade de São Paulo. Como a história social não pode ser apagada no espaço socialmente produzido, sua experiência concreta revela as tramas desta disputa, e o emaranhado de relações e contradições sociais que a colocaram em movimento. A produção habitacional por construtoras capitalistas, mediadas ou não pelo Estado, sempre foi a forma hegemônica da produção formal do espaço e tem sido ampliada no período recente caracterizado como “neodesenvolvimentista”. A produção de habitação social entrou definitivamente no circuito de valorização do capital, com fortes subsídios estatais e abertura de ações na bolsa pelas construtoras e incorporadoras que já atuavam em diversos setores da produção capitalista do espaço. Produzir habitação e infraestrutura urbana com subsídios do Estado passou a ser uma das garantias de produção de grande massa de mais-valia, e possibilidade de amortecer os efeitos da forte crise financeira e urbana desencandeada em 2008 nos Estados Unidos. Essa espiral de crescimento sustentada pela produção capitalista do espaço – que já ocorrera durante o “milagre econômico” dos anos 1970 – vem redefinindo os eixos das políticas urbanas e habitacionais no Brasil, além de garantir a atração de megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, que serão realizados no próximo período. Com isso, o preço das terras e imóveis nas capitais brasileiras já se tornou impeditivo para os trabalhadores. Sua presença será requisitada apenas na condição de força de trabalho para a produção e a reprodução de mercadorias, porque sua reprodução social, enquanto habitar, estará disponível bem distante nas bordas dos cinturões das periferias – e sujeita à precariedade dos sistemas de transportes públicos. O Mutirão Paulo Freire encerra um ciclo em que as pautas do movimento por Reforma Urbana ainda expressavam uma disputa societária por um projeto popular. E sua inauguração, no ano de 2010, após sete anos de obra dura e concretização das necessidades de seus moradores, revela um novo período que se abriu com o lulismo e seu “capitalismo para todos” – do qual o Programa Minha Casa, Minha Vida é uma das faces. A Era Lula apostou em um projeto político de amplo arco de alianças e de “conciliação de classes”. O MCMV encarna bem esse projeto: lucros às construtoras e as indústrias de materiais de construção, fundos públicos para compra de propriedades privadas, empregos aos trabalhadores da construção civil, acesso à moradia para alguns setores das classes populares e médias e votos aos políticos. Uma conciliação em que aparentemente todos ganham e ninguém perde. Entretanto, se olharmos apenas para o aspecto do crescimento e da amenização da crise econômica neste período, não se perceberá as contradições de fundo deste processo. Com a ampliação da produção habitacional através do MCMV, o governo federal ratificou a “inclusão” através do consumo, mas este programa apresenta algumas questões importantes: em que medida este modelo é universalizável? Por que a produção habitacional no Brasil mantém sua característica predominantemente manufatureira? Por que encarar o déficit habitacional no país somente através da provisão habitacional ofertada por empresas privadas? Como ficam a requalificação e a urbanização de favelas? E por que não encarar politicamente a situação dos imóveis vazios nos centros das cidades, e revertê-las para o cumprimento de sua função social? Tais questões nos remetem ao entendimento de que o crescimento econômico é distinto de desenvolvimento social, ao tornar importante a ênfase na economia que está crescendo e favorecendo alguns setores e não o conjunto da sociedade brasileira, como o setor da construção civil (empreiteiras e construtoras), as indústrias de cimento, aço, ferro, os setores imobiliário e financeiro, etc. Fez a economia crescer e gerou empregos, mas inserida na reprodução social do capital – hierárquica, desigual e contraditória, o que difere do ciclo conhecido como dos mutirões autogeridos em São Paulo que, em meio as dificuldades e até mesmo precariedade na produção de habitação, contribuíram na formação de pessoas mais conscientes e autônomas, através da socialização e acumulação do saber-fazer e de técnicas produtivas, na construção coletiva da organização popular e de cultura política dos trabalhadores periféricos e não sindicalizados. O mutirão autogerido, de maneira distinta da autoconstrução generalizada, permitiu a experimentação da autogestão em processos produtivos e territoriais nas cidades brasileiras onde quer que tenha se desenvolvido. Isto sinalizou para a classe trabalhadora durante duas décadas a capacidade de suprir suas necessidades ao relativizar a relação capital-trabalho, e permitir a produção e organização do trabalho sob relações de produção que aboliam parcialmente a relação patrão-empregado, por dividir o canteiro de obras entre o mutirão autogerido aos finais de semana e a produção por empreiteira na semana, muitas vezes contratada sob a orientação do movimento. A gestão do processo produtivo esteve sob responsabilidade do Movimento popular, com participação de suas respectivas coordenações de obras e das assessorias técnicas, e as decisões ocorriam em assembléias com a presença do conjunto dos trabalhadores-mutirantes. Além do mais, permitiu a possibilidade de se pensar a moradia sob outros aspectos, ao ampliar sua qualidade e sua relação com a cidade, e demonstrar que os trabalhadores de baixa renda podiam morar melhor e se apropriar, sob outras dimensões, da moradia e da cidade que habitam. Esta história está presente na arquitetura, na paisagem e no conjunto de relações sociais ali impregnadas nos espaços construídos e vividos. E que se evidenciam na comparação entre as unidades habitacionais produzidas por mutirão autogerido com aquelas produzidas pelos órgãos estatais e construtoras sem a participação popular ou a autoconstrução generalizada. Uma das diferenças mais significativas a favor do mutirão autogerido é a tendência de apropriação efetiva de seus idealizadores-produtores-consumidores, ao expressar um momento de desalienação concreta, e que estará sempre presente na vida das pessoas, em seu espaço habitado e nos dilemas enfrentados neste processo de produção e conscientização dos agentes associados. Essas pessoas não estão mais (felizmente) imersas no canteiro do mutirão, mas o mutirão autogerido jamais sairá de suas vidas, porque deixou uma memória da autogestão que irá sempre lembrar que os produtores podem se autodeterminar e se autorealizar, ainda que estas experiências circunscritas não tenham avançado sobre as outras dimensões da vida social – o que pressuporia um processo revolucionário maior em curso. Portanto, a autogestão se apresenta como uma chave importante na reconciliação entre processo de produção e ações políticas no processo de associação dos agentes produtores, e pode sinalizar para outras formas de reprodução social como momentos de transição para o novo, ainda que carregue consigo o velho que precisa ser superado. Por esta razão, o Mutirão Paulo Freire foi uma construção social do historicamente possível, e seus agentes não deixaram de “ousar para tudo ter” [26]. Inseridos nas contradições do sociometabolismo do capital semiperiférico, semearam formas coletivas de existência, de laços comunitários intra-classe e entre-classes na configuração do projeto popular interrompido pela história recente. Em sua particularidade universal, deixou em aberto as possibilidades de busca das saídas da história para a realização futura de uma humanidade socializada. Sua existência diz algo essencial nesta caminhada, já que é caminhando (e neste caso produzindo) que se constrói o caminho. NOTAS [1] Oliveira comparou a sociedade brasileira a um ornitorrinco por ser um bicho incongruente, encalhado na encruzilhada de uma evolução que seguiu adiante. A metáfora zoomórfica sugere uma sociedade que perdeu a capacidade de escolha e por isso tornou-se a encarnação de uma “evolução truncada”. Em Crítica à razão dualista / O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. [2] Paulo Freire (1921-1997) era educador e foi um dos mais notáveis pensadores brasileiros. A pedagogia da libertação proposta por Paulo Freire é baseada na relação crítica e dialógica do professor e educando com a realidade que compartilham, por oposição à educação bancária, heterônoma e alienante – e também por oposição ao vanguardismo intelectual e sua transmissão acrítica e unilateral de conteúdos. Foi militante da esquerda católica e da causa socialista, tendo participado de govenos populares como os de Miguel Arraes e de Luiza Erundina. [3] O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deixou de financiar o programa depois das recorrentes denúncias de irregularidades em vários níveis (irregularidade fundiária, nos custos das obras e na prestação de contas). Ver, Pedro Arantes. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado, FAU USP, 2004. [4] A implosão propriamente dita de um conjunto habitacional da COHAB Castelo Branco em Carapicuíba, obra de Jânio Quadros derrubada por Erundina depois que suas paredes de cimento e gesso começaram a ruir, foi um dos símbolos dessa implosão da herança autoritária [5] Tanto apoiadores dos mutirões (como a UMM) quanto seus críticos (como Chico de Oliveira) acreditavam que o governo Lula iria ampliar e nacionalizar a política de mutirões. O que se viu foi o contrário, o domínio das empresas privadas sobre o setor. [6] Sobre o programa, ver Mariana Fix e Pedro Arantes “Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação”. Correio da Cidadania (http://www.correiocidadania.com.br) [7] Segundo Cristiane, “quase todo mundo que está aqui fez inscrição [nas filas da Cohab e CDHU] e não conseguiu nada. Quando entra na fila dos mais pobres não sabe quando vai conseguir, um monte de gente não consegue. O movimento é então a única forma de acesso para algumas pessoas: só está ali porque precisa mesmo”. [8] O déficit habitacional no |
leia também:
entrevistas com cinco mutirantes
jade percassi nota sobre a usina sérgio ferro |