entrevistas com cinco mutirantes
jade percassi
As entrevistas apresentadas a seguir foram realizadas por Jade Percassi como parte da sua dissertação de mestrado 'Educação
Popular e Movimentos Populares – emancipação e mudança de culturas
politica através de experiências de participação e autogestão', realizada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2008, sob orientação do professor Celso Beisiegel.
Cremilda Eu sou a Cremilda, tenho 45 anos. Trabalho, sou doméstica, e tenho quatro filhos em quinze anos de casamento. Vim pra São Paulo há quinze anos, da Bahia, pra trabalhar. Aí logo que eu cheguei meu tio já morava em invasão, na Juta. Eu comecei a participar de reunião e consegui um terreno na Juta mesmo. Só que veio uma ordem de despejo e derrubaram umas casas lá, então a minha parte, o terreno que eu tinha pego parou, não ia continuar enquanto não resolvesse a parte das casas. Era invasão mesmo, o pessoal construía suas casas e depois tentava regularizar. Aí como eu trabalhava, quando o pessoal voltou para o terreno eu não estava. Quando eu cheguei no final de semana, tinha um moço no meu terreno. Eu acabei perdendo meu terreno. Voltei a participar das reuniões e consegui outro, mas tinha muita briga, então eu fiquei com medo, era sozinha, né. Foi quando eu conheci meu marido. Minha sogra já tinha a casa dela, e quando a gente resolveu ficar junto, ele fez no terreno mesmo da casa dela uma casinha, onde a gente está até hoje, dois cômodos e um banheiro, tudo amontoado um em cima do outro. Vieram quatro filhos, né? Foi quando eu comecei a participar das reuniões do movimento, de mutirão. Era no tempo da Erundina, e eu fui participando no Beira Rio... Aí eu fiquei grávida, e quando o pessoal veio conhecer este terreno era pra eu ter vindo junto, mas era mês de dezembro e chovia muito. Eu pensei “vou pra esse lugar que eu nem conheço, com esse barrigão...” Aí eu desisti. Depois que eu ganhei o Gustavo eu voltei de novo pro mesmo grupo. Depois de seis meses que eu tinha voltado saiu essa vaga, e tinha quatro pessoas do grupo mais velhas do que eu. Mas como a coordenadora era a mesma, a Lúcia, ela sabia que eu tinha participado muito antes, ela me incluiu nesse grupo que vinha pra cá. Ela falou “Lembra daquele terreno que você não chegou a ir conhecer? É lá.” E o pessoal ficou assim, né, Guaianazes... quem é que quer ir pra Guaianazes? Ela deu até o final de semana pras pessoas decidirem se iam querer ou não. E tinha uma dívida, também. E eu ia perder? Não precisava nem esperar o final de semana pra saber. Aí eu vim aqui conhecer o terreno e pegar a dívida. No dia em que eu cheguei aqui, a vaga já tinha passado pra outra pessoa. Pra você ver como é o negócio, diz que o que é do homem o bicho não come...O Chico falou pra esperar a Lucimara, da Leste, chegar, que tem outras vagas de outros grupos; essa veio do Belém. Quando ela chegou, a gente viu que a dívida era de uns 280 reais. Eu perguntei em quantas vezes poderia acertar, ela disse que em 5 vezes... era pegar ou largar! Aí eu peguei, né, graças a Deus. Gosto muito daqui... Meu marido falava assim: se for pra morar em apartamento você vai morar sozinha, porque eu não vou pra ficar preso feito um cadeeiro! Mas depois ele veio, viu, passou a gostar... e minhas crianças gostam muito daqui, elas cresceram aqui dentro, não vêem a hora de se mudar pra cá. Mas foi assim, minha vida cansada (risos). Mas eu não desisti, passei por muita dificuldade; trabalho na semana, depois fim de semana estou aqui... Mas espero logo que acabe, a gente se mude, que acaba o sofrimento. E acaba? Acho que não, né. Sempre vai ter trabalho pra gente...Mas só de não ter que vir pra obra de final de semana, acordar as 6 horas de sábado e domingo... Quando eu venho com as crianças, tenho que acordar as 5 e pouco, até ajeitar todo mundo, botar todo mundo no caminho...mais minhas panelas de comida... Mas eu estou muito contente, com a minha vaga que eu arrumei, acho que foi Deus que preparou mesmo. E as pessoas que não escolheram aqui se arrependeram. Não conseguiram nada até hoje. Porque está muito difícil conseguir vaga nos projetos, quase não tem mais mutirão. E nesse período todo, desde você começar a freqüentar as reuniões do movimento, até fazer parte das discussões e das obras da Paulo Freire... Você sente que você aprendeu alguma coisa? Aprendi... Acho que não só eu, mas muita gente aprendeu. Aprendeu a trabalhar em grupo, aprendeu a dar mais valor às coisas. A gente aprendeu a respeitar o próximo, a muitas vezes não falar o que quer para não machucar alguém. Cada dia que eu venho aqui eu aprendo a dar valor a mim mesma, pela minha força, que eu não sei de onde tiro, sabe. Ai, é Deus, né. Você já tinha trabalhado em construção antes? Não, foi a primeira vez. E eu falo pras meninas, quando eu terminar meus estudos, que eu vou pro primeiro ano este ano, eu ainda vou fazer um curso, não sei de quê, se técnico ou se de mestre de obras... Tem, será. Mestre de obras mulher? Se não tiver, você vai ser a primeira!!! O que eu aprendi aqui, trabalho na obra, não foi difícil, sabe. Eu levei o DVD do documentário pro meu marido assistir em casa. Eu mostro e digo a ele “veja aí, a sua veia” (risos) Mas eu acho que até ele depois de ver passou a sentir orgulho de mim, porque aquela coisa de macho, né, ele jamais pensou que isso fosse acontecer. Porque sempre eu que venho de fim de semana, ele é pintor e trabalha por conta, então sempre tem trabalho pra fazer. E eu aprendi, aos poucos aprendi muito. E o que eu aprendi já dá pra pensar em trabalhar com isso mais tarde. E você fez amigos aqui? Eu só não sei se eles acham que eu sou amiga deles, mas eu mesma gosto de todo mundo aqui, considero todos meus amigos. Companheiros de luta. Eu espero que continue todo mundo aqui. Porque tem mutirões que o pessoal sai depois... A gente aqui se dá bem, espero que ninguém jogue fora isso que a gente construiu. Às vezes as pessoas têm dificuldades de pagar as contas... Mas eu acho que aqui poucas pessoas não pagam água e luz aqui, mesmo que mora de favor ou de invasão. E sobre a proposta de tentar formar coletivos de trabalho, o que você acha? Eu não sei. Só se a gente montasse alguma coisa aqui pra gente trabalhar em grupo, porque fora, empresas assim, é difícil contratar tudo junto. Tem que fazer projeto independente, daqui mesmo. Eu mesma, se for trabalhar com obra, se juntar o pessoal, mais os técnicos, arquiteto, engenheiro, acho que dava pra trabalhar junto... mas o tempo é que vai dizer, né? Às vezes a gente faz um plano, e Deus faz outro... (risos) Dora Meu nome é Maria das Dores mas todo mundo me conhece como Dora. Tenho 36 anos, três filhas. No momento em que eu entrei pro movimento minha vida estava assim: meu companheiro morreu, e eu morava com minha sogra. Quando ele morreu, ela me disse que eu precisava caçar meu canto. E eu achei que ela estava sendo muito ruim comigo, fiquei revoltada mesmo. Foi quando uma amiga me falou do movimento de moradia, que eu nem sabia que existia até então. Ela coordenava um grupo, e me disse pra eu me inscrever. Eu dizia que aquilo não dava certo, e ela insistia que dava, sim. Eu fui lá, me inscrevi sem muito acreditar, e comecei a participar das reuniões. Lá se conversava muito sobre o sonho das pessoas de ter a casa própria, da necessidade das pessoas aprenderem a caminhar sozinhas. E me ajudou muito, eu fui crescendo a partir daquele momento. Quando saiu a vaga aqui, eu vim pra cá. E ganhei muito com isso tudo, hoje eu agradeço a minha sogra porque sei que se ela não tivesse feito aquilo, eu não teria aberto os olhos e começado a lutar, não seria quem eu sou. Eu aprendi a me sustentar e a cuidar de minhas filhas sozinha. Morar aqui, dentro do que era um sonho, é bom demais. E como foi a vinda para cá? Quando eu vim pra cá, eu estava precisando muito mesmo. Doente e desempregada, com as três meninas, não tinha como pagar aluguel. Se eu continuasse naquela casa, corria o risco de ser despejada. Eu ia acabar indo pra debaixo de uma ponte se ninguém me ajudasse, eu estava me sentindo muito sozinha. Aí eu descobri que essas pessoas com quem eu convivi estes anos todos eram a minha família, na verdade. (pausa) Desculpe por estar chorando, mas as pessoas daqui do mutirão foram meu pai, minha mãe, minhas irmãs, no que foi o pior momento da minha vida. Através do movimento de moradia eu ganhei uma família enorme. São cem pessoas. Você pensa que é mais uma, até o dia em que você precisa e descobre que de fato faz parte. Eu ainda não consigo falar sobre isso. Sob que aspectos você acha que esse período foi um aprendizado? Ah, eu aprendi muito. Às vezes a gente passa em frente de uma obra, vê a pessoa ali trabalhando, se esforçando, mas não está vivendo e sentindo aquilo. Depois um dia você entra num prédio pronto, sem ter sentido as coisas acontecerem. Quando eu entrei aqui, era só um terreno. A gente fez tudo, desde a fundação, os prédios foram levantando, hoje eu olho e acho isso tudo muito bonito. Hoje se você me perguntar o nome de qualquer ferramenta eu sei. E das relações... eu nunca tinha participado de um trabalho coletivo. Tem pessoas que é mais difícil de conviver, outros são abertos... de qualquer jeito a gente tem que ser capaz de expor o ponto de vista, e depois ser capaz de escutar o do outro. Voltar atrás, às vezes de coisas que você tinha certeza de que sabia. Isso eu aprendi aqui também. Eu aprendi a conviver, e a aceitar as pessoas como são. E do ponto de vista da organização popular? Antes de ir pra uma manifestação, eu não tinha noção do que era. Aliás, eu achava que era uma baderna, que eram pessoas que gostavam de confusão, eu não entendia que elas estavam lá lutando por um objetivo. Eu aprendi que a gente estava lá pra lutar por um objetivo, que é a moradia, e pela dignidade nossa e dos companheiros. Eu nem lembro de como eu pensava como a sociedade funciona, antes de entrar pro movimento. Eu sei que mudou. Se você precisasse passar adiante essa experiência, o que você diria? Eu acho que você tem que esquecer que você é pobre e parar de pensar que você não tem condições. Porque eu acho que todo mundo tem condições de conseguir. sua casa. Tem que se inscrever no movimento, participar das reuniões, se tiver manifestação, ir pra rua lutar pelo seu direito, porque todo mundo tem o direito de ter sua casa. As outras coisas vêm com o tempo, você vai aprender na convivência. Você vai descobrir que tem muita gente na mesma situação que você. Durante um tempo, você vai pagar um preço alto por isso: abdicar da sua família, trabalhar aos finais de semana, se dedicar. Mas quando você alcançar o seu objetivo, vai descobrir que a luta valeu a pena. E aí, a luta acaba? Não... A luta sempre continua. No movimento, porque quando a gente entra na nossa casa, tem a amiga que ainda não conseguiu, e você vai querer contribuir pra que ela consiga também, não só a casa, mas melhores condições de vida. E continua também com as minhas filhas, porque elas aprenderam a lutar com a mãe. Elas sabem que elas moram nesse lugar hoje porque a mãe lutou muito, então elas vão saber lutar por outras coisas também. Meire Meu nome é Rosemeire, tenho 34 anos e cheguei ao movimento através dos amigos. Tudo começou lá onde moro, no Jardim Santo André. Meus amigos começaram a me falar das reuniões que estavam acontecendo pra conseguir casa, e eu fui com eles. Eles desistiram, só fiquei eu. Foram dez meses de reunião, surgiu uma vaga pra uma mulher, ela não gostou e não quis. A vaga voltou pro grupo, eu era a próxima e peguei. Quando eu vim pra cá eu não gostei não, eu achei horrível, só tinha mato... Não tinha nem o CÉU, nem a padaria, nem bar. Mas tive que ficar, né, eu e o Cassio. Logo veio a construção do barracão, e eu fui ficando. Até hoje. Meus pais me dão o maior apoio, eles dizem “nossa, nove anos na luta, e você agüentando...”. E eu estou viva, e agüentando firme. Quando você começou a freqüentar as reuniões você fazia idéia do que era o movimento de moradia? Nunca tinha ouvido falar. Nas reuniões eu era mais quieta, ficava mais escutando, prestando atenção. Eles falavam sobre os terrenos que eram possíveis de serem conseguidos pelo movimento, falava da luta, comentava o que estava acontecendo nos mutirões, as obras, qual ia conseguir entregar... Mas eu não imaginava que ia ser como foi, não. Quando eu olho agora dá o maior alívio, só de lembrar do começo, da fundação, das ferragens... vixe! Você tinha trabalhado alguma vez na construção civil? Nunca. No começo minha mãe falava “você não vai dar conta não, de carregar carrinho, magrinha desse jeito”. E eu falei que se queria uma casa, tinha que conseguir. E consegui, graças a Deus. Acho que quase todas as frentes de trabalho eu passei. Fiz de tudo, caixinhas de elétrica, encanamentos, cavei muros de arrimo, carreguei blocos. Acho que até assentar blocos hoje eu consigo. Qualquer coisa que eu pegar pra aprender, se eu começar acho que eu consigo. Falei pra Dora, quero colocar o piso dela. Antes eu não tinha noção do que era construir prédio, aliás eu nem sabia que ia ser prédio, achei que podiam ser casinhas. Eu não penso em trabalhar com isso, mas estou procurando emprego, então se surgir eu vou. Quando é dia de semana, várias vezes eu venho pagar dia de falta pros meninos. Meu irmão trabalha de pintor e eu também ajudo ele. Você já trabalhou em muitas coisas; você acha que tem diferença entre o trabalho lá fora e o trabalho do mutirão? A diferença é que aqui o trabalho é mais pesado, mas firma é pior. Porque aqui as arquitetas, o mestre de obras verificam o trabalho que está sendo feito, mas em firma você vai no banheiro o supervisor vem atrás. E você passou por algum tipo de discriminação? Por causa da minha opção sexual? Em outros lugares já, mas aqui não. No começo, ninguém sabia, né. Aos poucos, o pessoal foi percebendo. Depois, eu mesma comentei, e foi normal; ninguém nunca teve preconceito comigo. Todo mundo gosta de mim aqui, ninguém comenta nada, nem faz piada. Todo mundo conhece e respeita a Joyce, se dá bem com ela também, é legal. Ela também entende que eu estou no movimento, ela vem ajudar. Se tudo der certo ela vem morar comigo, esses dias a mãe dela veio ver onde ela vai morar. O que você acha que mudou na sua vida, depois que passou a fazer parte do movimento? Logo que eu entrei todo mundo onde eu moro criticava, o pessoal falava que mutirante era tudo gente que não presta, os vizinhos falavam que era só favela... Mas o que eu encontrei foi outra coisa, muita gente melhor do que as de lá. Aqui não tem violência, não tem drogas, a gente pode conversar sobre qualquer coisa. Eu já me acostumei, eu gosto das pessoas daqui. Roberto Meu nome é Roberto, sou casado, tenho 39 anos. Moro atualmente na casa da minha sogra. Conheci o mutirão através de minha esposa, na época em que a gente namorava. Entrei pro movimento Leste 1 nessa época, mais ou menos 1998, uma amiga dela nos chamou pra participar do grupo de origem santa madalena. A gente estudava, era complicado porque as reuniões eram de sexta feira, ou faltava eu ou faltava ela mas nunca deixamos de ir. No início eu acreditava e desacreditava ao mesmo tempo, porque passava esse tipo de coisa na televisão, da Cohab, da CDHU, que pegava uma favela e tirava a parte de frente pra avenida e fazia prédio pra deixar bonitinho mas continuava a favela atrás. Também se comentava que era difícil de conseguir, e que o pessoal depois vendia. Eu ainda não sabia distinguir o que era construído pela Cohab do que era construído por mutirão, porque estava procurando entender como funcionava. No decorrer o coordenador foi trazendo as informações e eu entendi que no movimento quem construía a casa eram os próprios mutirantes, e pela Cohab eram as empreiteiras. Eu fiz a opção pelo mutirão. Tentei trazer as pessoas da minha família para o movimento, porém cada um tem sua cabeça... minha irmã entrou, ela é do mutirão Che Guevara. O mutirão é desgastante, não por causa da construção, mas pela forma como são liberadas as verbas. Por isso é que algumas pessoas chega uma hora desistem, falam que não agüentam mais, que são muitos anos de luta pra obter a moradia. No meu caso, estou há dez anos, pode até ser que eu venda um dia na vida, mas não agora. Eu dou muito valor. Se um dia eu me mudar, será para uma casa térrea, daqui a muitos anos. Outra questão do mutirão é que a prefeitura e a Cohab mandam o povo muito pra periferia, e às vezes isso resulta em que as pessoas acabam vendendo pra voltar mais pra perto do centro. Também existe sim, gente aproveitadora, mas não é a maioria. Tem o caso daquele pessoal ali de baixo, que veio de uma favela, e olha, eu não estou falando mal do pessoal da favela não, porque a prefeitura removeu o pessoal da favela, construiu esses predinhos e trouxe o pessoal pra cá. Mas muita gente acabou vendendo, na dificuldade, e voltando pra favela. Por que você acha que o poder público tem essa tendência? Você acha que tem diferença no processo de vir pra cá dessas pessoas em relação ao de vocês? No caso do pessoal da favela, não precisava tirar as pessoas de lá, era só deixá-las num local provisório e construir moradia digna para elas onde ficava a favela, seria mais correto. Porém tem a questão do preço da terra. A gente fez uma ocupação de um terreno na mooca. É uma região que tem um poder aquisitivo, digamos assim, médio. A própria subprefeitura e os moradores em volta não querem um mutirão ali, porque desvaloriza, existe uma imagem negativa referente a mutirante. Eles acham que é o pessoal da favela. Eu não moro em favela, mas conheço muita gente que mora na favela e é muito mais gente boa do que aquele pessoal que mora ali na moóca. O mutirão Paulo Freire está no Inácio Monteiro, é praticamente divisa com Ferraz. É praticamente no fim de São Paulo, até hoje a gente não sabe o valor do terreno. Mas mesmo sendo longe, no mutirão você escolhe a sua moradia. É apartamento, porém quem projeta os apartamentos são as próprias pessoas que vão morar. Não é a Cohab, a CDHU, um arquiteto sozinho. Os próprios mutirantes que fazem a discussão de como vão ser os apartamentos. Claro que tudo depende das famílias e da coordenação, na discussão com a assessoria, tem lugar em que quem decidiu foram os arquitetos, mas aqui foi até o fim com os moradores. E isso influencia muito, porque eu que vou morar. Se você é arquiteta e traz um projeto pronto, eu tenho que aceitar porque eu quero uma moradia digna. Mas não é porque eu não tenho dinheiro pra comprar um apartamento que existe do meu gosto, que eu tenho que aceitar qualquer coisa que a Cohab ou a CDHU apresentar. Se a gente pode ter a opção te opinar sobre a nossa casa, por que fazer de qualquer jeito? Eu acho que isso tinha que ser mais discutido. E do seu processo desde que você veio do grupo de origem para essa associação, você sente que houve alguma mudança no seu modo de ser e de pensar? Claro que sim. Eu sei fazer várias coisas, mas eu tenho muito que aprender. Eu já sabia chapiscar, hoje já sei rebocar. Aprendi o detalhe, do jeito de pegar na colher pra jogar a massa. A parte elétrica, eu entendo hoje como se conduz a energia de um interruptor para o outro. Nós aprendemos a olhar e entender a planta, que no caso é um conhecimento do mestre de obras e do arquiteto. Claro, tem pessoas com maior ou menor interesse, mas eu fui atrás de aprender um pouco de cada coisa aqui dentro. Eu nunca tinha trabalhado assim profissionalmente com a construção, e hoje teria total condição. Mas pra fazer um curso de mestre de obras por exemplo eles fazem a exigência, que eu acho errada, de que a pessoa tem que ter trabalhado 5 anos como pedreiro com carteira registrada... a gente acaba desistindo de fazer algumas coisas por causa dessa burocracia. Mas quando acabar aqui, a gente vai pegar a chave na mão e dizer “eu consegui”. Eu tenho orgulho de entrar no meu apartamento, que eu construí. Eu estou mesmo preparando uma retrospectiva com todas as fases, desde o terreno, a construção do primeiro barracão... quem está desde o início vai ver e reconhecer, “eu estava ali”. E cada um vai ver o momento em que entrou, vai ver o que veio antes também. A família que entrou há menos tempo, há uns dois anos, vai dizer “puxa... foi mesmo uma luta que vocês fizeram, tenho orgulho de vocês”. Porque a pessoa não pode esquecer, ela tem que ter orgulho de ter sido mutirante. Eu penso em continuar na luta, mesmo que não seja lá com o Leste 1, mas aqui dentro do mutirão... que vai ser um condomínio, um conjunto habitacional. Eu participei da reunião que teve com o pessoal da economia solidária, e quero voltar pra fazer parte, fazer o curso. Se eu mesmo não for montar alguma coisa, quero ajudar quem for montar, já vou doar meu computador pra associação... A gente fica pensando aqui no canteiro de obra, depois que terminar em reformar os vestiários, fazer uma videoteca, fazer coisas que dêem certo, pensando nas pessoas daqui, especialmente nas crianças. Independente de quem for continuar, tem que continuar na luta. Mesmo que eu não participe mais na Leste, se alguém me perguntar como eu consegui a minha moradia, eu vou dizer “olha, não é fácil. Mas quando você pegar a chave você vai olhar pra trás e dizer – sofri, mas venci.” O importante é que valeu a pena. Os valores, a relação com as pessoas... mudaram? Sim. Vou dizer que do mutirão, talvez eu seja o cara mais crítico que tem. No bom sentido, não é por maldade, mas quando chega numa assembléia, pra discutir e decidir sobre um assunto, eu perguntava por que a pessoa gostaria que fosse daquele jeito. Por exemplo, você está numa sala que não foi rebocada. Se você puser gesso, sai mais barato agora, mas depois tem a manutenção. Enquanto se você gastar um pouco mais com reboco, mas pra frente vai durar mais. Esse tipo de coisa, às vezes eu entrava em atrito mas de um jeito saudável, pra discutir posição. Com o tempo, eu aprendi a me expressar melhor, porque antes eu me expressava de uma forma que o pessoal não me apoiava. Eu reconheci isso e aprendi muito, a discutir as idéias sem precisar brigar. Eu hoje estou no almoxarifado. Arrumei a betoneira, foi uma economia de uns 600 reais, e querendo ou não, cada despesa dessa vai sair do bolso de todo mundo depois. O pessoal acha que eu sou muito rígido, mas as pessoas têm que cuidar das ferramentas, dos materiais. Se a pessoa perde a luva eu digo pra trazer de casa, que o mutirão não vai ficar jogando dinheiro fora. Depois vai tudo ser embutido na prestação. No decorrer da obra eu fui aprendendo. O mutirão em si, independente da situação, é um aprendizado pra todo mundo. Agora, sobre a convivência, eu não posso te responder ainda. Porque é diferente aqui hoje com as pessoas da família que estão no mutirão. E também, acho que a gente só conhece mesmo as pessoas no dia a dia, e embora há muito tempo, a gente só se encontra no final de semana. Quando estiver todo mundo morando é que a gente vai conhecer a família inteira, o filho de fulano, o marido de sicrana. Mas você tem a expectativa de participar de empreendimentos coletivos a partir do momento em que todos estiverem morando, com a implementação do projeto de economia solidária em conjunto com o movimento de moradia? Você acha que tem diferenças entre o trabalho num emprego e no coletivo? Claro que tem. Quando você não tem patrão, não tem, com perdão da palavra, encheção de saco. Com patrão você fica o tempo todo sob uma pressão de outra pessoa, encarregada ou do próprio patrão que quer que saia a mercadoria ou seja o que for. No coletivo, por conta, você não tem essa pressão de fora, porém você tem que dar tudo de si pra ter essa conquista. Aumenta a responsabilidade, porque quando você é empregado, você não está nem aí, quem tem que se preocupar com a administração é o dono. Eu penso sim, em participar de algum negócio coletivo, mas acho que ainda é cedo pra dizer porque a gente ainda não sabe quem são as pessoas que vão de fato participar. Mas você acha que as pessoas que passaram por essa experiência têm melhor condição de participar? Eu acho que são poucas pessoas ainda interessadas no assunto. Eu acho que quem está interessado tem que estar participando desde o começo. Senão, tem uma diferença. A gente precisa conversar sobre como vai funcionar, pra decidir se vai participar. Como não tem trabalho por aqui, o bairro precisa se fortalecer. Aqui é longe, a minha esposa vai ter que se habituar, com horários de condução e tudo. Se a gente arrumar trabalho aqui, não precisa mais ir pro centro, a não ser pra comprar alguma coisa que não tenha. Pra se ter uma idéia, não tem nem cartório por perto, o mais próximo está a uma hora daqui. Com isso eu não quero dizer que o Paulo Freire vai mudar o bairro, mas pode dar o início. Eu hoje trabalho com decorações de festa. Se eu monto uma equipe, cada um faz a animação, os doces, tudo, não precisa ir pro centro atrás de clientes. Eu penso em acessar o crédito pra comprar uma cama elástica, uma piscina de bolinhas. Ensinar as pessoas a mexer com os balões pra montar uma equipe de decoração... Então eu acho que seria uma chance pras pessoas que estão desempregadas, ou mesmo que estão empregadas mas querem mudar, deixar de ter patrão. Vai crescendo. Eu não vou deixar de sonhar. Rose Meu nome é Roseane, mais conhecida como Rose. Sou natural de Pernambuco, sou casada e tenho duas filhas. Tenho 46 anos, oito anos de luta. Sou mutirante e serei moradora do condomínio da associação Paulo Freire. A minha vida antes de entrar no movimento...Eu era simplesmente uma dona de casa. Eu não trabalhava fora; meu trabalho era um trabalho de levar as filhas na escola, cuidar da casa. A minha entrada no movimento até hoje eu falo que foi...uma amiga que me fez um convite para ir numa missa na igreja católica do bairro que eu morava, o Iguatemi. Aí eu aceitei, fui eu e minhas duas filhas, minha colega e a filha dela. Quando terminou a missa, um rapaz foi lá na frente, pediu ao padre pra passar um comunicado. E ele falou o seguinte: quem quisesse participar de uma reunião sobre moradia popular a igreja cedia um espaço para eles, que eram de um movimento, o movimento a que hoje eu sou filiada, que é o movimento Leste 1, e essas reuniões aconteciam de quinze em quinze dias. Ele passou a data, e tanto eu como a minha companheira, a gente se interessou. Nós não tínhamos casa própria, e eu nunca tinha prestado atenção que havia movimento de moradia. E você sabe que ainda tem gente que não sabe que existe o movimento de moradia. As vezes você só tem informações das coisas através da comunicação da televisão. Hoje sim, está até passando alguma coisa, mas não incentivando. Aí foi, nós fomos à primeira reunião. Chegando lá uma coordenadora me explicou como era, o Regulamento do Movimento, então eu me filiei. Você chegou a comentar alguma coisa com sua família, ou foi uma coisa mais sua? Olha, eu primeiro entrei, pra pegar a informação, pra depois comentar. Fui, me informei como é que era, aceitei as condições, que teria que participar das reuniões... Era mais ou menos uma hora, de quinze em quinze dias, tinha um regulamento... Eu aceitando, fui comunicar e a reação da minha família não foi positiva. Vamos dizer que foi negativa. Falaram que isso era uma enganação, que eu ia apenas perder meu tempo...não tive assim um apoio. Não tive. Mas isso não fez com que eu desistisse, não. Você lembra o que passou pela sua cabeça? Eu lembro! Quando ele falou lá na frente sobre a moradia, eu pensei: isso quer dizer que a gente tem uma chance de ter uma casa própria. Eu não sei de que maneira, mas eles estão dando uma oportunidade da pessoa ter uma casa própria. Eu pensei isso. E quando a coordenadora me explicou eu percebi que era uma possibilidade de conseguir a minha casa na luta. E isso pra mim era um desafio muito grande, eu era apenas uma dona de casa. Lavava, passava, cozinhava e tomava conta de filha... Você tinha idéia do que vinha pela frente? Não, eu não tinha idéia do que vinha pela frente. Eu acho que falar, a pessoa dizer que você vai ter que trabalhar, é uma coisa. Agora, na prática, é bem diferente. Eu preciso perguntar uma coisa, sei que se evita falar às vezes por causa do preconceito das pessoas em relação as ações do movimento, mas como foi para você participar de uma ocupação? Olha, houve várias ocupações. Mas eu acho que por medo, como eu via as ocupações pela televisão, eu não ia...mas sabia que tinha que ir. Então quando teve a ocupação daquele banco, eu decidi ir. Era um Banco do Brasil abandonado na avenida Sapopemba, era de noite, eu disse: eu vou. Fomos eu mais umas seis companheiras, que a gente combinou de participar, e levei minha filha. Ela disse: mãe, eu quero ir. Na hora que você está lá na igreja onde a gente se reuniu, você pensa: tudo bem, tranqüilo. Mas quando a gente chegou perto do prédio, dos dez ônibus, só seis conseguiram entrar. A polícia invadiu o local, e eu fiquei assustada, não por mim, mas pela minha filha. Eu como mãe, entrei na frente dela e falei: ninguém vai machucar minha filha. Mas o movimento estava preparado, o padre estava lá... E você tinha uma idéia já do que aquilo significava? Sim. Por isso que eu fui. Eu tinha um entendimento. A gente ficou acampado lá uma semana, a gente estava querendo chamar a atenção do governo para esses prédios públicos que ficam desocupados, sendo que tem muita gente sem moradia. Esse foi o nosso intuito. Estar lá por um motivo. Por que às vezes as pessoas pensam que a gente ocupa um espaço porque quer fazer lá uma favela ou um cortiço. Nem sempre é assim, muitas vezes é para chamar a atenção. E a gente foi alertado que seria por isso, e por isso decidimos ficar lá acampados uma semana. Depois fizemos um trabalho no bairro, saímos de porta em porta falando com as famílias. As donas de casa estavam com medo achando que nós éramos favelados, bandidos. Então nós fomos conversar com as pessoas, dizer que nós éramos trabalhadores, que nós ocupamos um prédio que estava desocupado, como tantos outros que existem, enquanto existe tanta gente morando debaixo de viadutos, em lugares de alto risco... que estávamos querendo chamar a atenção do governo para a questão da moradia. Com isso nós fizemos amizades com os moradores, e ficou tranqüilo. O movimento faz esse tipo de coisa. Quando a gente ocupa um espaço, no dia seguinte a gente sai conversando com os moradores do bairro, pra explicar tudo. A gente não fica fazendo arruaça, nem bagunça não. Quanto tempo você freqüentou o grupo de origem antes de vir para a Associação? Dois anos. E como funcionavam as reuniões? Essas reuniões eram a cada quinze dias, com todas as pessoas filiadas e um coordenador. E o coordenador participa toda quinta feira de uma reunião do movimento, na pastoral do Belém se reúnem todos os coordenadores de todos os grupos. Então ele ia pras reuniões e pegava as informações com a executiva, que o movimento tem uma executiva. Então ele passava as informações, por exemplo, se tinha um terreno que estava pra ser liberado pelo governo ou pela prefeitura... A gente era informado de um mutirão que formou uma demanda... Todas as informações sobre o movimento vinham através dessas reuniões. E também a gente fazia participação popular na rua, quando tinha um ato, uma manifestação com as reivindicações do movimento, a gente era convidado a participar. E vocês estudavam temas, como era? Estudava? Não... as discussões eram com relação à moradia. Como se organizar e como conquistar a moradia. Então... se aprendia? Ah, sim; a gente participava de cursos: eu mesma participei dos cursos para as discussões do Plano Diretor. Nós participávamos de cursos de cooperativismo, de coordenação... Tudo isso nós tínhamos, pelo movimento. E aí quando sua história começa a se misturar com a do mutirão? Eu fui premiada. Digo que fui premiada porque a gente no grupo de origem tem que seguir um regulamento. De participação nas reuniões e nas atividades. Então com isso você vai ganhando pontos. Porque é assim: quando surge um convênio, vai fechar uma demanda de mutirão, então essas vagas são distribuídas entre todos os grupos do movimento da região. Então quando chegam as vagas para o grupo, elas são distribuídas para as famílias por critérios. Pra isso que existe o regulamento nos grupos. Quanto mais uma família participa, mais critérios ela ganha para participar de uma demanda. Eu estava em quarto lugar dentro dos critérios de colocação, e vieram quatro vagas, duas para Unidos e duas para a Paulo Freire. Eu passei pelo mais difícil, que era filiar-me a um grupo e participar e agora estava me juntando a pessoas de todos os grupos de moradia. Pessoas diferentes, a gente foi se conhecendo aos poucos, e aí começou o Mutirão Paulo Freire. Isso em maio de 1999, quando a gente foi fazer nosso primeiro cadastro para formar a Associação Paulo Freire. Nesse mesmo dia foi tirada a primeira coordenação, entre nós mesmos; o pessoal do movimento coordenou mas as próprias famílias foram se oferecendo, se candidatando. Você já estava nessa formação? Não, eu ainda era uma pessoa ali sentadinha, esperando o que estava por vir. Eu não ia já assumir uma responsabilidade sem saber direito como seria o mutirão. A gente sabia dos outros contarem, só a teoria, mas na prática mesmo... na primeira eu não entrei não. Nós ficamos os primeiros seis meses num terreno emprestado de outro mutirão, o Dom Luciano. Em setembro/outubro nós tomamos a decisão de vir para o nosso terreno, que estava sendo invadido. Junto com a Assessoria e com o Movimento decidimos ocupar o nosso terreno e construir uma casa e um barracão, para fazer as nossas assembléias aqui mesmo. E foi o que a gente fez. Foi um dia que ficou bem na história, o dia que a gente escolheu para vir limpar e começar a construir. Era um dia de sábado e chovia muito... mas isso não fez com que a gente desanimasse não. Viemos, limpamos todo o terreno, compramos material, madeiras, e construímos uma casa, um barracão e dois banheiros. E aí começou. As nossas assembléias passaram a ser aqui. Começou a nossa luta, porque a gente já estava no que era nosso. O que passa pela nossa cabeça é: isso é nosso, e nós vamos defender. Nós começamos a comprar material e guardar aqui, então a gente se revezava em turmas na parte da manhã, de tarde e para passar a noite, para tomar conta. Aí teve a assinatura do convênio, o Secretario da Habitação na época era o Paulo Teixeira. E demorou mais de um ano pra sair a nossa primeira parcela, que era para o canteiro de obras. Foi quando a gente começou a trabalhar de verdade. Por que a gente achava que estava fazendo uma obra... primeiro nós contratamos pedreiros, trabalhadores profissionais, e nós éramos ajudantes, íamos carregar telhas, blocos. Não sabíamos o que estava por vir. Nós trabalhamos muito contentes e construímos este canteiro aqui, que pra nós foi o primeiro trabalho de mão de obra concreta, mesmo. Bom, terminando de construir esse canteiro, nós paramos. Porque a Cohab é assim, né. A gente faz uma coisa e depois fica aguardando a próxima liberação. Naquele momento já estava aprovado o projeto? Nós já tínhamos discutido o projeto, já tinha tido várias discussões. De projeto, de regulamento de obras. O regulamento nós começamos a discutir em outro lugar, naquele espaço da Juta, lá onde eles têm creche, padaria comunitária, várias atividades a partir do centro comunitário. Então a gente foi lá para conhecer o projeto deles e fazer nossa discussão. Foi bacana a discussão de projeto, porque a gente achava que ia vir o projeto pronto. Teve um mutirão que assinou o convênio junto com a gente, o Che Guevara, e o projeto deles já veio pronto. E na época a gente achou que o nosso também tinha que vir pronto. Mas ficou muito melhor porque nós que decidimos, quantos quartos e o tamanho da sala, da cozinha... tinha gente que queria sala grande e cozinha pequena; outros, cozinha grande e sala pequena... Foi uma discussão muito boa, e hoje está todo mundo satisfeito. Quem escolheu três quartos está com seu apartamento de três quartos, quem escolheu cozinha grande está com sua cozinha grande...a partir da discussão do projeto é que foi construído. Então, voltando: então em 2003 depois de aprovado é que começou a obra dos prédios. Aí que a gente viu o que era construir de verdade. Eu fiz coisas aqui que até hoje eu fico pensando: eu que fiz? A fundação, uma das partes mais pesadas da obra, e difícil, nós tiramos de letra... Você tinha alguma vez trabalhado na construção civil antes? Nunca! Tudo o que eu fiz eu aprendi aqui. Da fundação à hidráulica, de tudo hoje todos nós sabemos. Até ler planta nós tivemos que aprender. Aqui não teve preconceito, de achar que os homens tem que fazer aquela parte e as mulheres não. Foi tudo igual, mulheres e homens, foram distribuídos em grupos, de modo que trabalhassem homens com mulheres tudo junto, fazendo os mesmos serviços. Teve algumas pessoas com alguma dificuldade de saúde que ficaram com os trabalhos de apoio, nas equipes de cozinha, de limpeza, de levar a água para os grupos no canteiro...Mas trabalhou todo mundo igual, todo mundo junto. Aí às vezes eu me pego rindo sozinha, eu digo: meu Deus, como eu consegui? Aí uma coisa eu digo: o coletivo. É junto que a gente consegue fazer as coisas. Porque se fosse eu sozinha e alguém falasse: vai cavar um buraco ali, eu ia estar cavando aquele buraco mas não ia saber o que eu estava fazendo. E no coletivo, não: enquanto um estava com a picareta, outro estava com a pá, outra estava com o prumo, medindo. Cada um fazendo a sua parte, e o trabalho saía perfeito. O mestre explicava: vocês precisam cavar aqui, oitenta por oitenta. Então a gente pegava as ferramentas, e enquanto um cavava outro ia vendo se estava na medida certa...no coletivo a gente fazia os serviços, certinho. Então eu gostei muito de trabalhar junto com todo mundo, junto com as companheiras. Era até uma forma de a gente se distrair. Eu estava até falando com a Helô outro dia, que o mutirão é uma história na minha vida, porque eu aprendi muito. Em casa, quando eu era dona de casa, eu só sabia o que estava aontecendo no mundo pela televisão. E mesmo assim, eu nem entendia muito. Hoje eu gosto muito de prestar atenção em jornal. Eu entendo agora de política, de construção, de economia... Eu fui na casa da minha irmã esses dias e meu cunhado estava fazendo um muro. Eu em vez de entrar pra cumprimentar a minha irmã eu fui lá fiscalizar, fui ver o muro, se ele estava colocando os ferros direitinho...com segurança, para não cair na casa da vizinha do outro lado. Eu sinto orgulho de ter trabalhado no mutirão. É uma pena que essa gestão não aprova mutirão com autogestão, porque pra mim foi um aprendizado muito grande. Não só a trabalhar no coletivo, mas a conversar e conhecer os problemas das pessoas. Entender, ajudar e ser ajudada. Você acha que tem um problema só seu e chega aqui encontra as companheiras com outras histórias e problemas, e aí se esforça para resolver também os problemas delas. Por isso pra mim quando se fala em mutirão, eu coloco tudo isso junto, é um aprendizado muito grande. A gente conhece pessoas, por exemplo, os arquitetos, que são pessoas que fizeram faculdade, eles vêm e a gente fica pensando: nossa, eles sabem mais do que a gente. E de repente você descobre que sabe tanto quanto eles. Eles têm um aprendizado porque eles tiveram professor, aprenderam antes de exercer aquele trabalho. E a gente já entrou aprendendo, e com o conhecimento deles a gente aprendeu muito mais. O que a gente não sabia, a gente aprendeu junto com eles. A gente aprende a ser organizado... Tem coisas que você acha que você aprendeu que mudaram a sua própria vida? Que você nunca deve deixar a coisa passar: se tiver um obstáculo, tem que correr atrás de resolver. Ser responsável...a partir do momento que essa associação me colocou como coordenadora, eu descobri que estava assumindo uma responsabilidade muito maior do que poderia antes. Eu abracei essa oportunidade e fui aprendendo e me responsabilizando por muitas coisas. Na minha casa eu mudei, porque eu adquiri uma responsabilidade aqui numa obra, e transferi para as minhas filhas serem responsáveis pela nossa casa. A partir do momento que eu assumi o trabalho mutirante e o trabalho contratado durante a semana, eu me afastei da minha casa e dos serviços domésticos. Eu trabalho aqui de segunda a sábado, só aos domingos meu marido reveza comigo. Então eu tive que fazer com que elas fossem responsáveis pelo lar. Eu me dediquei ao mutirão, e é isso. Você acha que a sua forma de se comportar perante as coisas mudou? Mudou, pra melhor. O movimento de moradia é uma luta que ensina você a lutar pela moradia. Aí, através disso, da participação no movimento, eu descobri que existe a luta pelos direitos da mulher, a luta pelos direitos da criança e do adolescente, pela consciência negra e o fim do preconceito... Tem luta pra tudo! Não existe essa de “ai, eu não vou...” Se tem um obstáculo, pra isso existe movimento. Então hoje se eu vejo alguém com um problema com uma criança, eu agora sei indicar uma pessoa para um conselho da criança e do adolescente, um conselho tutelar... Existe muita gente mal informada, Jade. Eu converso com pessoas que não sabem como funciona nada, não sabem que existem direitos nem leis. Muitos não conhecem. Então a partir do momento...eu agradeço todos os dias, foi Deus que me fez ir na igreja. Eu nem era de ir à igreja, nesse dia eu fui convidada...hoje em dia eu vou todos os domingos, não pra ir me lastimar, eu vou agradecer. Porque foi no movimento de moradia que eu aprendi, mudou muito a minha vida. Então, para além da questão da moradia... pode-se dizer que você conseguiu o que buscava quando lá atrás foi para a primeira reunião do grupo de origem. Você sente que vai ser diferente, que vai brigar menos depois que entrar no seu apartamento? Vou continuar brigando, por outras coisas. Na moradia, eu vou ajudar as pessoas a brigar por moradia, porque tem muitos companheiros que ainda estão na espera de conseguir. Mas eu vou brigar por outras coisas. Nós estamos pensando em montar cooperativas, pra resolver a questão do trabalho. Não por questão de desemprego, que as pessoas foram se virando e quase todo mundo trabalha aqui. Mas a cooperativa é uma forma não só de trabalho, mas de criar um espaço que possa nos ajudar na gestão, nas relações das pessoas, do condomínio... A gente está pensando em formar um banco, está com muitos planos aqui. Eu posso nem trabalhar propriamente numa cooperativa, mas vou participar da comissão de acompanhamento. E as meninas? Você acha que fica para elas um pouco dessa história, as crianças aprenderam junto com vocês? As minhas filhas... Sabe aquela que mal abria a boca, de tão tímida? Hoje ela é a vice-presidente do grêmio estudantil da escola, que ela ajudou a formar. Ela descobriu pela internet que todas as escolas podiam ter um grêmio estudantil, e que é bom para a escola. Então ela formou um grupo, montou uma chapa, em toda a escola se formaram chapas, houve eleições e a dela ganhou. E toda terça feira tem reunião, com ata e tudo... Ela me diz: mãe, sou igual a você! Eu fico tão orgulhosa, Jade, eu não esperava. Pela timidez dela, por ser uma pessoa fechada... Ela participou aqui desde pequenininha, então ela aprendeu. Minha filha já está aprendendo a lutar por alguma coisa. A escola tem uma sala de informática, mas os alunos não usavam, porque não tinha ninguém para supervisionar os alunos. Achavam que eles iam quebrar os computadores. Então o grêmio assumiu esta responsabilidade e conseguiu esse direito. Então ela fica como monitora às terças e quintas, das 17h às 19h, e todos os alunos podem fazer suas pesquisas, seu trabalho escolar, e ela e os coleguinhas estão ali, tomando conta, e os computadores estão em perfeito estado. Agora o grêmio vai ser convidado a participar de um congresso dos estudantes secundaristas... Ela está muito contente com isso, e eu também. Você acha que mudou como mãe? Eu mudei no sentido assim: quando eu comecei a trabalhar no mutirão, aos fins de semana, e fora, durante a semana, eu me preocupei muito. Porque a gente sempre ouve dizer, em entrevistas e tal, que os filhos entram nas drogas e na marginalização porque os pais não têm tempo para conversar com os filhos. Então o que eu faço? Eu trabalho. À noite, que eu chego em casa, não fico me queixando de cansada ou me derrubando logo na cama. Eu chego, deixo minha bolsa no canto na cozinha, que é o melhor lugar pra conversar – porque se for conversar no quarto, acabo dormindo. Uma coisa que eu gosto na minha casa é que se faça as refeições na mesa. É uma briga até com marido. E se faz! Então elas estão ali preparando a janta, e eu começo a conversar. Elas perguntam como foi lá, eu conto tudo. Aí depois, é a vez delas. Quero saber como foi na escola, as notas...os namorados. Aliás, da parte dos namorados não precisou ninguém me analisar, eu mesma concluí que eu estava pegando no pé porque estava com ciúmes delas. Você está menos careta com elas? É, estou menos careta. Também porque se tem uma coisa que eu gosto é de ler. Se você não tem informação sobre alguma coisa e não tem a quem perguntar, não tem coisa melhor do que a leitura. Mas eu mudei, sim. Quem não gostou muito da minha mudança foi meu marido. Ele casou com uma pessoa e hoje eu sou totalmente diferente. Eu acho que não foi só comigo, mas com todas as mulheres. Meu marido notou a minha diferença e foi difícil de aceitar. Essa é a parte que a gente que entra para o movimento enfrenta dificuldade. É com o marido ou com a companheira. Eles percebem que a gente começa a descobrir coisas e pessoas. A gente começa a ser independente na nossa opinião. Só pra você ter uma ideia, eu antes votava em quem meu marido votasse! Quando tinha uma eleição meu marido falava: é esse aqui. Eu pegava, e votava naquele que meu marido mandou. Desde de que eu entrei para o movimento, eu e meu marido nunca concordamos sobre os candidatos. Ele começa a falar mal e eu começo a discursar sobre o meu candidato... Como pode, né? Hoje eu sou completamente diferente, hoje eu tenho opinião. Eu posso sentar e conversar sobre qualquer assunto...até mais do que ele. Está certo... tem mais alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de falar? Olha, essa é a minha visão do movimento, cada pessoa deve ter a sua imagem, né. No decorrer da luta pela casa própria, vem muita coisa. Tem que estar preparada. Eu passei por tanta coisa, e estou aqui. Fico tão orgulhosa. Como agora: a gente vai à Cohab pra uma reunião, eles prometem uma coisa. Dão uma data, na frente da comissão das famílias. Aí hoje eu ligo lá e eles dizem que não têm uma resposta ainda... e a gente tem que falar com as famílias, explicar que não é nossa culpa... Como assim, né? Realmente eu não tenho culpa, mas quero que se cumpra a data que foi acertada, é a última verba!!! Disseram para ligar mais tarde, mas eu não liguei. Esperei ficar mais calma, que isso aprendi com você: quando a pessoa vem com grosseria, a gente tem que manter a calma, para mostrar que a grosseira é ela. Então a Cris ligou, e eles querem que a gente preste contas do porquê o dinheiro da última medição não foi aplicado. Agora veja: como que a gente pode aplicar um dinheiro que recebeu para ser gasto no prazo de três meses e já está todo comprometido? Como íamos aplicar por um prazo mínimo de 60 dias? Até o gerente do banco não recomendou! Assim se aprende como funciona a política: eles dão uma data... E eu comentei que achei muito estranho, porque na gestão passada a gente participava de uma reunião na Cohab, sempre tinha uma secretária fazendo uma ata. No final, todos os presentes assinavam e nos era entregue uma cópia. Hoje não, as reuniões são marcadas assim de última hora, sem registro, você viu que o Pedro cobrou e eles se recusaram... O que isso lhe diz? Que eles não têm palavra, que estão ali nos fazendo de trouxa. Nós não estamos ali jogando conversa fora, sabe? Depois vem dizer o que é que nós temos que dizer na nossa assembléia! Eu vou lá perguntar por que não existe mais ata. Na nossa assembléia, e toda reunião, a gente usa ata. Então a partir do momento que é um órgão público e tem ali um diretor prometendo, ele tem que assinar embaixo, ora. Mas é uma luta... e a luta continua. |
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