No dia 17 de abril de 1996, aproximadamente 3 mil famílias sem terra ocuparam um enorme latifúndio no interior do Paraná. O episódio ficou conhecido mundialmente através das lentes do fotógrafo Sebastião Salgado – que retratou, no ensaio “Terra”, a massa de trabalhadores atravessando a porteira da propriedade com suas foices e bandeiras empunhadas para o alto. Com a luta dessas famílias, 27 dos 100 mil hectares do latifúndio se transformaram em assentamento da Reforma Agrária, tornando-se aptos a abrigar 1,5 mil famílias de agricultoras e agricultores.
A USINA – que já tinha vivido no COPROMO a experiência de projetar um conjunto para mil famílias – se mostrava aparentemente credenciada para o desafio de contribuir na elaboração do projeto arquitetônico e de implantação das 1,5 mil famílias sem terra. Mas havia uma diferença crucial: enquanto no COPROMO as mil famílias foram assentadas em uma área urbana de 54 mil m² (ou 5,4 hectares), no caso do Assentamento Ireno Alves dos Santos, 1,5 mil famílias seriam assentadas em uma área rural de 27 mil hectares – número cinco mil vezes maior. Em outras palavras: ao invés de projetar uma “implantação”, os arquitetos da USINA foram desafiados a projetar um assentamento rural e quiçá inclusive uma cidade inteiramente nova. As dimensões do novo assentamento – então o maior do país –, levaram o próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a repensar a melhor forma de ocupar aquele espaço: mesmo partindo de um contexto em que aproximadamente 90% das famílias a serem assentadas tinham origem estritamente rural, seria necessário dar luz a algum tipo de urbanidade. O desafio levou o MST, até então acostumado a contar com a assistência técnica de agrônomos, a buscar o trabalho de arquitetos e urbanistas. Movimento e assessoria técnica passaram então a sonhar com o novo espaço urbano a ser criado. Não bastaria simplesmente estabelecer um tipo qualquer de urbanidade. Abria-se a possibilidade de se construir uma cidade diferente e, mais do que isso, uma cidade contraposta à cidade segregadora, desigual e injusta construída pelo capitalismo. Nas palavras das lideranças do MST na época, buscava-se construir um assentamento com “visão de futuro e de vanguarda”: a Cidade da Reforma Agrária. No decorrer do processo, descobriu-se que aquelas terras já haviam abrigado, no passado, uma cidade planejada: dentro da área do assentamento ainda estavam de pé as ruínas que sobraram de uma antiga “vila barrageira”, que havia abrigado cerca de 13 mil habitantes – construtores da Hidrelétrica de Salto Santiago na década de 1970, durante o regime militar. A antiga cidade era geográfica e administrativamente dividida de acordo com a posição social de seus moradores: havia o bairro dos engenheiros, o bairro dos operários, e assim por diante. O planejamento anterior, portanto, tinha objetivos claramente segregadores. Essa pré-existência – que até então era desconhecida pelos novos ocupantes –, deu um novo arranjo a tudo o que se vinha discutindo até então. Esse processo pode ser compreendido com mais detalhes através da leitura de alguns dos textos produzidos por membros da USINA (ver indicações de leitura, ao final). O fato é que, com as complexas disputas colocadas em jogo, a infraestrutura urbana pré-existente foi reaproveitada, servindo de solo para a produção de uma outra cidade – não mais inteiramente nova, mas ainda movida por outros objetivos e outros princípios. Em meados de novembro de 1998, o assentamento iniciava o processo de habilitação para receber o financiamento referente à construção das moradias. Estes recursos correspondiam, na época, a apenas R$2.500,00 por família. Mesmo considerando que a vila estava inserida em uma área de preservação ambiental e sem estar muito claro para as famílias a necessidade de se ter duas casas (uma na centralidade e outra no lote de produção), foi realizado, por determinação do INCRA, o parcelamento, a demarcação e a distribuição dos primeiros 500 lotes. Desse montante, foram construídas 300 casas nos lotes urbanos, tendo as outras famílias optado por manter seus lotes apenas junto à produção rural. A fim de construir um processo participativo buscando estabelecer um programa que contemplasse desde a cultura construtiva local até o cotidiano do uso da moradia e o da produção agrícola, foi iniciada uma discussão com cada grupo de famílias do assentamento, buscando destituir as referências formais e, nas palavras do arquiteto João Marcos de Almeida Lopes, dar vazão à espacialização da "'cultura do morar' praticada por aquele interlocutor, valorizando mais os referenciais estabelecidos pelo tempo – a história das relações do morador com o espaço – que aqueles enunciados pelo espaço – a forma como ordenadora de relações no tempo" (LOPES, 2002). A USINA também auxiliou os assentados na montagem de uma cooperativa de serviços de construção civil – a COOPROTERRA –, com o objetivo de habilitar e capacitar o grupo, não só para receber e gerir os recursos destinados à construção das moradias, como também para ter uma alternativa de ocupação para os integrantes das famílias assentadas. Com o projeto da USINA, foi possível construir casas de 48 m², com alvenaria de tijolos cerâmicos, todas as esquadrias e o mínimo necessário de instalações – algo que parecia impossível dada a exiguidade de recursos. Além disso, ainda foi possível remunerar minimamente os assentados que integravam a cooperativa, cujo papel foi fundamental – embora a capacitação do grupo não tenha tido o mesmo sucesso devido às dificuldades em cumprir o cronograma, que exigia um ritmo bastante acelerado de produção. Mesmo com essa intervenção, a ocupação se manteve precária tanto nos lotes urbanos quanto nos rurais, não havendo rede de água instalada, energia elétrica ou sistema de coleta de esgoto ou lixo. Não havia recursos destinados à instalação de infraestrutura nem por parte do INCRA, nem pelos governos. Após um violento processo de desarticulação do projeto de implantação da Cidade da Reforma Agrária, a USINA prestou assessoria ao MST para o planejamento de seis grandes comunidades distribuídas pelo imenso território do assentamento. Os desenhos chegaram a prever equipamentos culturais, esportivos e de educação, poucos deles concretizados. Mesmo assim, é importante nos debruçarmos sobre esse episódio e entendê-lo como processo importante da disputa do ideário de cidade em geral. O arquiteto João Marcos de Almeida Lopes, da USINA, vê nesta experiência uma potência transformadora: "Quando o Movimento se prescreve como sujeito coletivo a partir do indivíduo que produz a vida e não exclusivamente mercadoria, parece-nos, a partir de nossas impressões no Ireno Alves, que alcança maiores avanços em termos de emancipação social: emerge a possibilidade de um projeto de construção de cultura, salta aos olhos os conteúdos ministrados em suas escolas, não é possível deixar de reconhecer diferenciais nos programas da rádio comunitária, chama a atenção as demandas dos assentados por espaços para o teatro, a música e a dança, etc. Talvez seja aí o campo da ordem contra-hegemônica e efetivamente emancipatória. Instituída em sua potencialidade transformadora, pelo tanto que se propõe ali construir, pensar e realizar esta 'outra cidade' compõe um espectro na amplitude da ação do próprio MST: no embate pela subversão das estruturas hegemônicas de domínio através da reinvenção da ação prática investida como ação política, o Movimento reinventa o lugar da própria Política" (LOPES, 2002). Participaram diretamente da redação deste texto: José Thiesen e Maiári Iasi REFERÊNCIA LOPES, João Marcos de Almeida. O dorso da cidade: os sem-terra e a concepção de uma outra cidade, in: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Produzir para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Porto: Editora Afrontamento, 2002. Coleção Reinventar a Emancipação Social: para novos manifestos. Volume 2. INDICAÇÕES DE LEITURA Entrevista com Pedro Fiori Arantes sobre o projeto da Cidade da Reforma Agrária, por Graziela Kunsch Cidade e Território: relato de uma experiência em um assentamento do MST, por Cibele Rizek, Joana Barros e Pedro Fiori Arantes Assentamento Ireno Alves dos Santos, por João Marcos de Almeida Lopes [verão editada do artigo “O dorso da cidade: os sem-terra e a concepção de uma outra cidade”] |
local
Rio Bonito do Iguaçu – PR linha do tempo
agente organizador Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST agente financiador INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (casas) + apoio do órgão de gestão urbana da ONU para trabalho de planejamento territorial atividades desenvolvidas pela usina
escopo do projeto
equipe
principais interlocutores Elemar Cezimbra (liderança regional do MST), Chico (Coproterra), Zé Pereira (Assentado), Calegari (coordenador da Coagri), Humberto (INCRA), Yves Cabannes (ONU). tipo de canteiro Canteiro autogerido (através da Cooperativa Coproterra) técnicas construtivas Alvenaria de blocos cerâmicos portantes e cobertura em telhas de madeira famílias 500 *Primeira etapa, com assessoria da Usina |